O dia que a VEJA foi contra o Escola Sem Partido

Luiza Brandão & Diogo Salles

O mundo é um lugar muito estranho.

Se um mês atrás alguém tivesse nos dito que em breve estaríamos divulgando uma matéria da Revista Veja como uma fonte de críticas relativamente competentes contra o Escola Sem Partido, nossa resposta se resumiria a uma indicação de aconselhamento com um profissional de saúde especializado.

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No entanto, não é esse o caso. Na capa da edição de novembro de 2018, o tradicional bastião do discurso midiático liberal-conservador expõe uma crítica contundente ao Escola Sem Partido. A redação da manchete não deixa margem para dúvidas: “ESCOLA SEM VEZ – Por que as soluções apresentadas para combater a doutrinação em sala de aula ameaçam piorar o ensino brasileiro”.

As circunstâncias da publicação são particularmente estranhas, especialmente quando se leva em conta que foi de uma reportagem de dez anos atrás da própria VEJA que o Escola Sem Partido tirava sua principal “evidência” de que haveria esse problema da “doutrinação ideológica” na educação brasileira.

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CNT/Sensus

A matéria de 2008 apresentava uma pesquisa encomendada ao instituto CNT/Sensus, cujos resultados foram usados pelos jornalistas para inferir que haveria um problema de esquerdização nas escolas, promovida por professores e professoras:

O levantamento ouviu 3.000 pessoas de 24 estados brasileiros, entre pais, alunos e professores de escolas públicas e particulares. Sua conclusão nesse particular é espantosa. Os pais (61%) sabem que os professores fazem discursos politicamente engajados em sala de aula e acham isso normal. Os professores, em maior proporção, reconhecem que doutrinam mesmo as crianças e acham que isso é sua missão principal é algo muito mais vital do que ensinar a interpretar um texto ou ser um bamba em matemática.

Para 78% dos professores, o discurso engajado faz sentido, uma vez que atribuem à escola, antes de tudo, a função de “formar cidadãos”  à frente de “ensinar a matéria” ou “preparar as crianças para o futuro”. Adversária do exercício intelectual, a ideologização do ensino pode ser resultado em parte também do despreparo dos professores para o desempenho da função. No ensino básico, 52% lecionam matérias para as quais não receberam formação específica, 22% deles nunca freqüentaram faculdade.

Um excelente exemplo do fenômeno de dissonância cognitiva que viria a se tornar regra para a extrema-direita brasileira, durante muito tempo esse texto era tomado pelo Escola Sem Partido como prova do suposto problema da “doutrinação” em salas de aula. Afinal, quando se acredita no que se quer acreditar, quem precisa de mais evidências?

Porém, dez anos depois, esse não parece ser mais o caso. Após a eleição presidencial de 2018 a extrema-direta e o Escola Sem Partido podem até ter se tornado hegemônicos, mas a percepção sobre temas como “doutrinação ideológica” nas escolas não parece ser mais o consenso nos meios que, antes, abraçavam tranquilamente tais discursos.

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Escola Sem Partido

Uma provável evidência dessa virada de 180 graus é a publicação na página do Facebook do Escola Sem Partido sobre a recente capa da revista:

Uma revista precisa ser muito desonesta para resumir nessa imagem uma proposta de lei que inclui entre os deveres do professor o de apresentar aos alunos, de forma justa — isto é, com a mesma profundidade e seriedade — as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito das questões controvertidas abordadas em sala de aula.

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Nando Moura

Prova de como muita coisa mudou de dez anos para cá: a postagem seguinte a essa é a divulgação de uma entrevista de Miguel Nagib, fundador do Escola Sem Partido, com o YouTuber Nando Moura, que atualmente soma mais de 260 mil visualizações. Desde então, a página do Escola Sem Partido vem compartilhando prints de comentários do vídeo no YouTube com depoimentos de pessoas que alegam ter sofrido “doutrinação” de professores. Todas as publicações são acompanhadas do seguinte texto: “DIANTE DE TANTAS EVIDÊNCIAS, NEGAR O CARÁTER SISTÊMICO DA DOUTRINAÇÃO É COISA DE DELINQUENTE INTELECTUAL.”

Na nossa própria página do Facebook, onde divulgamos a imagem da capa, recebemos vários comentários criticando a revista pelo seu papel na difusão e consolidação do ideário extremista que recentemente vem galgando cada vez mais posições de poder e influência política. Muitos desses comentários inclusive resgataram a matéria de 2008 como evidência da hipocrisia da publicação.  Entendemos os receios e suspeitas de todas e todos, mas o que a matéria de 2018 diz de fato?

A primeira consideração a se fazer é que não podemos esperar de uma reportagem da VEJA uma abordagem que vá muito além da linha traçada pelo editorial. Então, a redação da matéria busca ser flexível no que diz respeito a assumir lados: ao mesmo tempo em que parte do pressuposto de que há casos de proselitismo político praticados por professores em sala de aula, o que pode ser interpretado como uma simples reprodução da lógica de culpabilizar docentes, existe aqui um esforço de se fazer uma distinção importante:

Nas redes sociais, há relatos de alunos que tiveram de optar entre ir a uma manifestação contra Michel Temer e fazer uma prova, o que é inteiramente inadmissível. Em outro caso, uma professora definiu em sala de aula os eleitores de Bolsonaro como “pessoas execráveis, asquerosas e nojentas”, algo que fere qualquer princípio elementar de pedagogia. Tudo isso é intolerável dentro de uma escola. Mas há duas considerações relevantes. Primeira: essa não é a realidade das escolas brasileiras – são exemplos da exceção, e não da regra. Segundo: há formas eficazes de lidar com o problema, mas elas não estão em debate.

Apesar da frustrante insistência do texto num centrismo moderado, é significativo que o Escola Sem Partido seja tratado num enquadramento explicitamente crítico. Em especial, nos momentos em que a reportagem mobiliza expressões como “censura aos professores” ou quando questiona a noção de neutralidade que o Escola Sem Partido propõe para o ensino:

Ao falar da escravidão negra, será necessário também mostrar como ela pode ser justificável? Ao analisar a II Guerra, deve se expor os belos argumentos defendidos pelos nazistas, que exterminaram judeus em campos de concentração?
O resultado dos excessos será, no mínimo, a instauração de um clima pesado e antagonista na escola e, no limite levará os professores para a cadeia.

No parágrafo dedicado ao problema da doutrinação, a matéria tem um tom surpreendentemente propositivo. Há uma citação de Claudia Costin, do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, que diz que o “o debate entre coordenadores e professores precisa ser permanente”, especialmente quando tratar de temas contraditórios. Ou seja, a autonomia da escola e dos professores deve ser defendida justamente para que o ensino possa ser inclusivo. Eventuais problemas serão (como já são) resolvidos, contanto que haja um canal de comunicação sempre aberto entre a escola e as famílias e entre professores e coordenação, sem necessidade de um projeto de lei que restrinja a liberdade de cátedra e, por consequência, a experiência em sala de aula.

Isso não quer dizer que a matéria não possua falhas. O texto da reportagem insiste em reproduzir alguns dos sensos comuns que o Movimento Escola Sem Partido construiu em torno de si mesmo. Um exemplo disso é que o “mito de fundação” do movimento – em que o advogado Miguel Nagib teria se revoltado com a atitude do professor de história de uma de suas filhas ao comparar Che Guevara com São Francisco de Assis em uma aula – é reproduzido, mas não há qualquer menção às filiações políticas e ideológicas de Nagib anteriormente ao caso, que servem para questionar a suposta espontaneidade de suas atitudes.

Mas a questão que mais precisa ser tratada é se devemos ou não dar espaço para uma publicação como a VEJA no debate sobre o Escola Sem Partido. Muita gente apontou que o subtítulo da capa – “Por que as soluções apresentadas para combater a doutrinação em sala de aula ameaçam piorar o ensino brasileiro” – já seria problemático por assumir que existe uma dada forma de “doutrinação” sendo praticada em escolas, argumento que o Escola Sem Partido vem naturalizando ao longo do tempo como forma de culpabilizar professores e professoras. Quando essa expressão é reproduzida sem os devidos cuidados é inevitável que a revista pareça estar tomando o lado do movimento.

De fato definição que a matéria traz para o conceito de doutrinação é, na melhor das hipóteses, vaga e condescendente:

Doutrinar é expor ideias e opiniões com o propósito de convencer o outro. A todo bom professor cabe estimular o confronto de ideias e o livre pensar, inclusive expressando seu ponto de vista, mas não catequizar  – uma linha fina que exige discernimento constante. Quanto mais qualificado for um professor, menor a chance de postura equivocada.

Confundir doutrinação com argumentação não é a melhor forma de definir um posicionamento em um debate como esse.

Ao longo de toda a reportagem há também a reprodução de todos os sensos comuns e chavões presentes no debate educacional dos últimos 30 anos: uma lógica liberal que representa os professores como “facilitadores” do conhecimento e da livre circulação de ideias, “gestores” do saber escolar. Enquanto essa perspectiva se preocupa em nos lembrar que alunos não são tábulas rasas e que as experiências sociais que eles têm fora da escola influenciam suas vivências em sala de aula, o mesmo crédito não é dado ao professor. Da mesma forma que precisamos enxergar nossos estudantes plenamente e comportar todas essas visões no espaço da escolas, insistimos em esquecer que professores e professoras também não são folhas em branco. Suas experiências de vida importam tanto quanto para o cotidiano escolar.

Infelizmente, é previsível que tais questionamentos não apareçam na matéria. Porém, ainda que a problematização seja essencial nesses momento – afinal, “divergir é vital” – é significativo que uma publicação com o alcance da VEJA esteja condenando um projeto que ela mesma ajudou a criar. Não podemos superestimar o impacto da publicação, especialmente em tempos de crise financeira e editorial do jornalismo impresso, mas é preciso considerar o valor simbólico dessa capa como provocação para um debate crítico mais amplo sobre o Escola Sem Partido.

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A expressão do Paulo Freire nessa foto resume nossa reação de ter que ler essa citação do Bolsonaro.

Poucas pessoas chegarão a ler a reportagem – até porque o preço de R$18 e um site com paywall não facilitam – mas o simples fato de que a ilustração e a manchete da capa estarão presentes em bancas de jornal, consultórios médicos e na casa daquela sua tia esquisita que ainda assina a VEJA por algum motivo é uma maneira interessante de capilarizar esse debate.

Não podemos nos dar ao luxo de nos abster nesse momento. Sabemos do esforço que tem sido a luta contra a censura e a perseguição a professores. Quando vemos o crescimento do Escola Sem Partido e o risco de sua institucionalização na forma de leis ou políticas públicas, precisamos de todas as vozes se juntando às nossas. Ainda que essas vozes nem sempre concordem conosco, enquanto tivermos um adversário comum não podemos insistir em ignorar uns aos outros. 

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