Atualização: O projeto de lei 2731/2015 do deputado Eros Biondini (PTB-MG) discutido nesse artigo foi retirado de tramitação a pedido do próprio autor em novembro passado. Ainda assim, a discussão presente nesse texto continua pertinente pois o PL 1859/2015 (assinado por 16 deputados), também discutido aqui, permanece em tramitação e ainda apensado ao projeto “escola sem partido” federal, o 867/2015 de Izalci Lucas (PSDB-DF). E não obstante, os argumentos utilizados nesse projeto – ou a falta dos mesmos – continuam sendo reproduzidos nas tentativas mais recentes de proibir e criminalizar o trabalho com as temáticas de gênero e sexualidade em sala de aula.
Texto de Diogo Salles
Publicado originalmente aqui, em 09/09/2015
Nesse mês de Agosto (20/08/2015), uma nova proposta de legislação que coloca em risco a liberdade de professores dentro de sala de aula, o PL 2731/2015 , entrou em circulação na Câmara dos Deputados. Assim como as demais propostas às quais corre apensada, a PL 2731 altera os Planos Nacionais de educação para “dispor sobre a proibição do uso da ideologia de gênero na educação nacional.” Segundo a redação do projeto, a “ideologia de gênero” deve ser combatida da seguinte forma: “Não cabe à escola doutrinar sexualmente as crianças, desprovidas que são das necessárias compreensão e maturidade, ainda mais quando essa doutrina vai contra todo o comportamento habitual e majoritário da sociedade, pois isso pode causar-lhes danos irreversíveis quanto à sexualidade e quanto a aspectos psicológicos.” Destaque para a expressão “o comportamento habitual e majoritário da sociedade.” É pertinente refletir sobre o que seria esse suposto padrão social indicado, mas nunca especificado, e o que deve ser feito com aqueles que fogem da “regra” desse tal “comportamento majoritário”.
Como se as escolhas semânticas do texto já não fossem lamentáveis o bastante, ele ainda estabelece que “Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão adequar seus planos de educação, em consonância com o disposto no artigo anterior, no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da data da publicação desta lei”; “O não atendimento do prazo estabelecido neste artigo, impossibilitará o repasse de recursos financeiros federais, destinados à educação, ao ente federativo em atraso.”
E quanto às punições individuais? “O descumprimento da proibição de utilização da ideologia de gênero, orientação sexual e congêneres ou de qualquer outro tipo de ideologia, na educação nacional, sujeitará os infratores às mesmas penas previstas no artigo 232 da Lei nº 8.069/90 (ECA), além da perda do cargo ou emprego.” Ou seja, segundo o ECA, “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento: Pena – detenção de seis meses a dois anos.”
Apesar de alarmante, não é a primeira vez que a abordagem de questões de gênero e sexualidade nas escolas tornam-se alvo de disputas pela via política. Os casos vão desde a exclusão dessas temáticas do Plano Nacional de Educação em 2014, até disputas ainda se desenrolando em diversos municípios e estados pela aprovação de seus respectivos planos, tendo gênero e sexualidade como temas “quentes” cuja eliminação dos textos é o objetivo de determinados grupos. O exemplo mais extremado dessas tensões foi o da aprovação da “Emenda da Opressão” em Campinas .
Não deixa de ser impressionante o destaque dado às questões de gênero dentro desses debates. É válido fazer um resgate de como essas tensões tem se desenvolvido na letra das propostas em circulação e na definição que o conceito de gênero vem assumindo entre os grupos que apoiam essas medidas combativas.
No âmbito nacional, dois PLs (7180 e 7181) pretendem limar da LDBE e dos Parâmetros Curriculares Nacionais quaisquer brechas para se trabalhar questões de gênero e sexualidade em sala de aula. O veto à transversalidade que os projetos propõem mata todas as chances de que temas não ligados ao conteúdo técnico de cada matéria sejam trabalhados em sala. Aparentemente, temas como ética, saúde, orientação sexual e pluralidade cultural não são pertinentes para a educação escolar. Outro projeto, esse de número 1859 trata de alterar a LDBE especificamente para proibir “adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação.”
A expressão “ideologia de gênero” aparece como a peça chave dessas PLs. Apesar do conceito de gênero ter sido desenvolvido dentro da literatura feminista, “ideologia de gênero” não é uma expressão difundida nesses espaços; em oposição, fala-se sobre “questões de gênero”, “identidade de gênero” ou “gênero”, pura e simplesmente. Movimentos que apoiam o combate às temáticas de gênero usam o termo ideologia com o sentido de “ideias enganosas”, ou seja, conceitos e mentalidades que atrapalham a compreensão da realidade. Então, uma ideologia de gênero seria um conjunto de ideias falsas que enganam as pessoas a respeito da verdade sobre quais são as identidades e comportamentos sexuais adequados; e, se essa definição de verdade é única e imutável, tudo que foge dessa regra faz parte da mentira. Na justificação do PL 1859, por exemplo, defende-se a ideia de proteger a família de possíveis agressões promovidas pelo sistema de ensino contra os valores que devem ser aprendidos somente pelo convívio parental (educação moral, sexual, religiosa, etc). A redação se baseia num trecho da Constituição que determina a educação como dever tanto do Estado quanto da família. No entanto, seguindo a lógica do PL, na época da promulgação da Constituição, 1988, as ameaças que a educação familiar sofre atualmente eram impensáveis porque ainda naquele período a “ideologia de gênero” não havia se difundido para o público em geral. O suposto marco para a fundação da “ideologia de gênero” seria a publicação do livro Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade, de Judith Butler, em 1990, logo, alguns anos depois da produção da Constituição. No entanto, pouco depois o texto da PL se contradiz ao afirmar que
A ideologia, entretanto, já havia iniciado suas construções nos anos 80, antes de Butler, quando o conceito de gênero passou a ser adotado pelo movimento marxista e feminista, que via nesta teoria uma justificação científica para as teses desenvolvidas inicialmente por Karl Marx e Friedrich Engels.
Então, se a tal “ideologia de gênero” já existia “antes de Butler”, por que a Assembleia Constituinte que produziria o documento básico para a redemocratização do sistema político brasileiro ignoraria um problema tão sério quanto esse? É curioso que em Problemas de Gênero, suposto divisor de águas para a fundação da “ideologia de gênero”, a expressão não apareça uma única vez no livro de Butler.
A relação que o texto faz entre a obra de Butler e o marxismo também é estranha. Apesar de sua formação filosófica marxista, Butler se encaixa muito mais na corrente pós-estruturalista, que rompe em diversos pontos com a teoria marxiana, seguindo outros caminhos para entender como funcionam as relações entre indivíduos e identidades (no caso dela, identidades de gênero). Além da obra de Butler, o conceito de gênero sempre correu por fora da teoria marxiana. Conexões entre feminismo e marxismo são comuns, mas autoras feministas geralmente preferiram buscar outras vias para entender questões como as diferenciações qualitativas entre os sexos e a inclusão ou marginalização social e histórica da mulher através de outras ferramentas teóricas. Isso acontece porque conceitos marxianos como o de classe, por exemplo, não davam conta de explicar tais questões de forma satisfatória. A historiadora feminista Joan Scott ajuda a esclarecer essa questão ao afirmar que a suposta relação entre instrumentos de análise como classe, raça e gênero são um tanto quanto forçadas
A ladainha “classe, raça e gênero” sugere uma paridade entre os três termos que na realidade não existe. Enquanto a categoria de “classe” está baseada na teoria complexa de Marx (e seus desenvolvimentos posteriores) da determinação econômica e da mudança histórica, as de “raça” e de “gênero” não veiculam tais associações. (…) Além disso, quando mencionamos a “classe”, trabalhamos com ou contra uma série de definições que no caso do Marxismo implica uma idéia de causalidade econômica e uma visão do caminho pelo qual a história avançou dialeticamente. Não existe este tipo de clareza ou coerência nem para a categoria de “raça” nem para a de “gênero”. No caso de “gênero”, o seu uso comporta um elenco tanto de posições teóricas, quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos.
Resumindo, marxismo e teorias de gênero não são a mesma coisa. Fica a dúvida sobre onde o texto da PL 1859 quer chegar com suas comparações sendo que elas não se sustentam muito bem após uma análise um pouco mais atenta. Entender o marxismo como uma ideologia (no pior sentido possível da palavra) é uma escolha discursiva daqueles que criticam essa corrente. Até aí tudo bem. Mas tratar as discussões sobre gênero como um apêndice da teoria marxiana é incoerente. O texto ainda acusa a importância indevida dada ao conceito de gênero por ONGs e instituições ligadas à ONU, sendo que o termo nem sequer possuiria uma definição clara. O que é curioso é que no próprio “marco fundador” da “ideologia de gênero”, Judith Butler apresenta algumas definições para o conceito, uma delas entende gênero “como uma relação entre sujeitos socialmente constituídos, em contextos especificáveis”; ou seja, gênero é culturalmente construído a partir de certos contextos históricos e sócio-econômicos.
Se a falta de definições é um problema para o argumento do projeto, o que não falta são autoras dando suas próprias contribuições para definir o conceito. Joan Scott, mesmo questionando essa busca por descrições e significados puros das palavras (“Os que se propõem a codificar os sentidos das palavras lutam por uma causa perdida, porque as palavras, como as idéias e as coisas que elas significam, têm uma história.”), não deixa de apresentar suas ideias sobre o que é gênero. Em seu excelente artigo GÊNERO: UMA CATEGORIA ÚTIL PARA ANÁLISE HISTÓRICA (que pode ser lido aqui ), a historiadora resume a questão da seguinte forma
O gênero se torna (…) uma maneira de indicar as “construções sociais” – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a proliferação dos estudos do sexo e da sexualidade, o gênero se tornou uma palavra particularmente útil, porque ele oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens. Apesar do fato dos(as) pesquisadores(as) reconhecerem as relações entre o sexo e (o que os sociólogos da família chamaram) “os papéis sexuais”, estes(as) não colocam entre os dois uma relação simples ou direta. O uso do “gênero” coloca a ênfase sobre todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade
Argumentos que indicam gênero como uma “construção social ou cultural” parecem causar um certo espanto nos movimentos que incentivam o combate à “ideologia de gênero”. Em outro texto do blog, foi analisada uma cartilha que informa sobre os perigos da tal “ideologia”. Esses materiais de divulgação vêm sendo amplamente distribuídos em municípios cujos Planos de Educação estão em deliberação; em Campinas, esses panfletos eram impressos com fotos dos vereadores envolvidos na produção da “Emenda da Opressão”.
Na PL 1859, um outro trecho do projeto faz eco à mensagem da cartilha
Foi, porém, Judith Butler quem apresentou, no início dos anos 90, o conceito filosófico moderno de gênero, sob a forma que poderia ser aplicado, através do movimento feminista, para conduzir à destruição da família, necessária para promover a revolução socialista. Segundo Butler, quando as feministas se pensam a si mesmas como mulheres, já estão com isto, construindo um discurso que as impedem de emancipar-se dos homens. As feministas não deveriam mais falar da mulher como sujeito do seu movimento, mas deveriam, em vez disso, substituir tanto a feminilidade como a masculinidade pelo conceito amorfo e variável de gênero.
A ideia de Butler como uma promotora da revolução socialista ou marxista (as palavras parecem ser usadas como sinônimos, mas elas não são) já foi mencionada anteriormente como bastante forçada. Quanto à destruição da família? A acusação absurda parece bem fora de lugar. A ideia de substituir a feminilidade pelo “conceito amorfo” de gênero não faz sentido dentro da lógica da própria Butler. Gênero não é amorfo; muito pelo contrário, ele implica em decisões tomadas por indivíduos sobre como se colocar dentro dos espaços de socialização. Isso vai desde maneiras de vestir, comportamento, formas de expressar sexualidade, etc. O que Butler defende é que as mulheres tomem nas próprias mãos o direito de definir quais são suas identidades, se impondo contra um sistema que as nega esse poder definindo de cima pra baixo o que é adequado e feminino o suficiente (interessante também que todos os autores das PLs mencionadas sejam homens). Não se trata de destruir a família, mas sim reformar a instituição de maneira mais justa para os que fazem parte dela. O texto do projeto trata gênero como um fim em si mesmo quando na verdade ele é um meio, um caminho para concretizar posicionamentos. Assim, parece que nem o próprio autor do PL soube interpretar muito bem os materiais que ele menciona.
O mais grave é que partes incompletas do livro de Butler são citadas sem indicação de página ou de possíveis cortes feitos. Um trecho de 28 linhas e margem recuada é mencionado na PL de uma maneira que praticamente sugere uma teoria da conspiração feminista (!)
Durante a maior parte do tempo a teoria feminista supôs que haveria uma identidade existente, entendida através da categoria da mulher, que constituía o sujeito para o qual se construía a representação política. Mas recentemente esta concepção da relação entre a teoria feminista e a política foi questionada a partir de dentro do próprio discurso feminista. O próprio sujeito “mulher” não pode ser mais entendido em termos estáveis ou permanentes. Há uma farta literatura que mostra que há muito pouco acordo sobre o que constitui, ou deveria constituir, a categoria “mulher”. O filósofo Michel Foucault mostra que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que eles em seguida passam a representar. Nestes casos, recorrer não criticamente a um sistema como este para emancipar as mulheres é obviamente auto sabotador. A denúncia de um patriarcado universal não goza mais da mesma credibilidade de outrora, mas é muito mais difícil desconstruir a noção de uma concepção comum de mulher, que é conseqüência do quadro do partriarcado. A construção da categoria “mulher” como um sujeito coerente é, no fundo, uma reificação de uma relação de gênero. E esta reificação é exatamente o contrário do que pretende o feminismo. A categoria “mulher” alcança estabilidade e coerência somente no contexto da matriz heterossexual. É necessário, portanto, um novo tipo de política feminista para contestar as próprias reificações de gênero e de identidade, uma nova política que fará da construção variável da identidade não apenas um pré- requisito metodológico e normativo, mas também um objetivo político. Paradoxalmente o feminismo somente poderá fazer sentido se o sujeito “mulher” não for assumido de nenhum modo.
Para qualquer um não acostumado com as ideias de Butler, o discurso construído em torno dessa citação monta um cenário desolador onde um pequeno grupo feminista quer roubar da mulheres aquilo que as define como tais. Entretanto, na edição nacional de Problemas de Gênero (tradução Renato Aguiar, 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013), essas 28 linhas em margem recuada transformam-se num texto que se estende por três páginas (18-20) e cuja redação só se assemelha superficialmente ao do trecho apresentado no PL 1859. Seguindo o texto integral, o argumento de Butler não fala em anular a definição de mulher, mas permitir que essa definição englobe um espectro muito maior de possibilidades.
A oposição entre gênero (construção social) e sexo (“verdade” biológica) também é muito fomentada pela justificação do projeto. E essa oposição funciona a favor de criar uma relação de certo e errado, verdadeiro e falso, entre os conceitos de sexo e gênero. Seguindo o argumento, gênero seria uma ideologia inventada do nada com propósitos maquiavélicos (a destruição da família); ela está sendo inserida sorrateiramente por professores em alunos desavisados como sementes das futuras armas que destruirão as bases da sociedade atual, bases formadas em certezas biológicas. Esse é outro ponto muito levantado pelo senso que condena as discussões sobre gênero. Discursos como o texto da cartilha reproduzida acima reproduzem essa lógica que acusa a existência de um grande perigo, mesmo que a explicação do porquê esse perigo é tão terrível assim não sejam muito satisfatórias: “Para eles, não existe “homem” ou “mulher””, falta dizer quem são esses “eles” por trás desse sujeito indeterminado (a lógica do inimigo invisível mostra-se presente mais uma vez); “é cada um que deve inventar sua própria personalidade, como quiser”, personalidade como um sinônimo para identidade de gênero é uma relação no mínimo confusa; “Mas isso é loucura! Por que alguém iria querer isso?”, a pergunta é retórica, mas a resposta não deixa de ser pertinente. De fato, por que é importante problematizar a forma como entendemos certas normas e sensos comuns entre nós. E por que é importante realizar esses debates não só em casa, mas no espaço de interação e vivência da escola? Algumas centenas de respostas podem ser encontradas aqui.