Por que o hino nacional também é um problema

No início desta semana várias escolas públicas e privadas foram surpreendidas por um e-mail encaminhado pelo Ministro da Educação Ricardo Veléz, recomendando às direções que perfilassem seus estudantes, fizessem a leitura de uma carta contendo o slogan da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, junto da execução do hino nacional, para “saudar o Brasil dos novos tempos” – sugerindo também que alguns trechos da performance fossem  gravados e enviados ao MEC para fins de divulgação.

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No dia seguinte, em decorrência das várias críticas à iniciativa do ministro, o MEC voltou atrás em parte das suas sugestões. Uma nova versão da carta foi enviada às escolas, em que a menção ao slogan de campanha foi retirada e acrescentou-se a exigência de que qualquer gravação feita devesse ser acompanhada de autorização prévia dos funcionários das escolas e responsáveis de estudantes. Entretanto, tal recuo não parece mais do que uma tentativa de disfarçar o caráter explicitamente autoritário que orienta o atual governo. Na data de produção dessa nota já há casos de escolas divulgando filmagens com a leitura da versão original da carta para alunos, sem a autorização dos seus responsáveis. Isso só comprova que o dano causado não pode ser facilmente revertido.

Mesmo no campo democrático tem sido defendida a ideia de que a sugestão do ministro de execução do hino nacional não seria a questão; que o real problema seria apenas a utilização do slogan de campanha do agora presidente Bolsonaro e a filmagem dos alunos sem autorização prévia. Respeitamos quem defende esta posição mas, democraticamente, discordamos dela.

Não acreditamos ser razoável ignorar o peso simbólico que essa ação carrega. A execução do hino nacional com crianças e jovens perfilados frente à bandeira nacional com a reprodução dos dizeres “Brasil acima de todos, Deus acima de tudo” é claramente parte da estratégia bolsonarista de construção de um inimigo. Inimigo este tanto no plano externo, quanto interno. Notadamente, na atual posição que a política externa brasileira toma, a função de inimigo externo – tão conveniente para deslocar a atenção de crises institucionais envolvendo integrantes do governo – pode ser facilmente atribuído à Venezuela. Já internamente, presenciamos uma reprise de períodos como o Estado Novo e a Ditadura Militar, em que símbolos de um patriotismo mitificado eram usados para criminalizar movimentos sociais. Hoje, todos aqueles que defendem os direitos humanos e se posicionam contra a perda dos direitos sociais podem ser convertidos nesse tipo de inimigo.

Por isso achamos necessário chamar atenção para essa questão que parece passar despercebida por muitos. O hino nacional, assim como outros símbolos nacionais, é muitas vezes naturalizado como uma simples forma de estimular o civismo e o “amor à pátria”. No entanto, a história recente do Brasil é marcada por vários exemplos de como esses símbolos são mobilizados por governos autoritários para estabelecer uma identidade aparentemente unificadora, eliminando e negando a existência do dissenso e do conflito, marcas da democracia por excelência.

Não negamos que, de fato, há uma lei que obriga a execução do hino nacional no ambiente escolar uma vez por semana (12.031/2009). Entretanto, executar o hino na escola é diferente de impor aos alunos que participem de uma cerimônia como a sugerida pelo MEC.  Significativo também é o fato da citada lei modificar uma norma legal anterior (5.700/1971), implantada no período ditatorial sob o governo Médici. Este é mais um elemento para entendermos o uso que o atual governo faz desse legado ditatorial disfarçado de nacionalismo: autoritário, negador da diversidade e da diferença.

Não somos contra o estímulo ao nacionalismo e ao patriotismo nas escolas. No entanto, acreditamos que existem outras formas mais produtivas e democráticas de se estimular esses sentimentos. Se se quer ensinar a amar o Brasil, um caminho possível passaria, por exemplo, pela valorização da nossa diversa e rica produção artística. Por que não falar dos Ceramistas do Vale do Jequitinhonha, como sugeriu Anne Rammi, ativista pela maternidade e a infância de São Paulo? Por que não falar do nosso cinema e da nossa música, valorizados no exterior mas atacados no Brasil como obras de esquerdistas que apenas se aproveitam da Lei Rouanet. Um outro caminho possível, e que não exclui o anterior, seria fornecer às crianças, jovens e à toda população motivos reais para se orgulharem de seu país. Seria um grande motivo de orgulho se o ministro da educação, ao invés de dedicar suas falas públicas a perseguir professores, se preocupasse em garantir o piso salarial e o tempo de planejamento dos docentes, infraestrutura adequada para as escolas, materiais didáticos, merenda de qualidade, etc. Seria motivo de orgulho para qualquer brasileiro leis trabalhistas que de fato defendessem o trabalhador e o seu direito à aposentadoria; serviços públicos de qualidade; e, finalmente, não mais presenciar o seu país liderando os índices mundiais de feminicídio e assassinatos da população LGBT.

Entendemos que o uso de símbolos nacionalistas que esse governo faz é mais uma maneira de construir como inimigo passível de violência toda e todo aquele que não se identifica com essa visão una de país. Essa violenta negação da diversidade brasileira, articulada ao slogan de campanha do governo atual, é uma demonstração assustadoramente explícita de um projeto fascista de sociedade, que claramente desconhece ou simplesmente não se importa com valores democráticos fundamentais. Esse episódio recente é só mais uma evidência do uso de símbolos nacionalistas e religiosos para unificar um campo político e vilanizar todo grupo de oposição, já que o “Brasil [está] acima de todos” e “Deus acima de tudo”. Em um cenário como esse, não sobra espaço para a democracia.

 

Professores contra o Escola Sem Partido, 27/02/2019

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