O Escola Sem Partido volta-se contra si mesmo: estratégia de sobrevivência?

Diogo Salles

 

comissão especial
Instalação da Comissão Especial Escola Sem Partido na Câmara dos Deputados. Estaria a base do movimento “escola sem partido” tentando se tornar mais palatável pra garantir a efetividade da comissão? Fonte

A princípio, é impossível romper a simbiose que se formou entre o Escola Sem Partido enquanto movimento e associação e as várias iniciativas políticas conservadoras que compraram o discurso do combate à “doutrinação ideológica” e à “ideologia de gênero” (MOURA, 2016). Desde 2014, quando começam a aparecer os primeiros anteprojetos e projetos de lei que visam instaurar o Programa Escola Sem Partido, esses grupos vêm usando tal discurso para se projetar politicamente e, em troca, tentam transformá-lo em normas e regras a serem seguidas pelos sistemas de ensino. Essa correlação de forças estava gerando frutos e não aparentava ter data para acabar, pelo menos até recentemente.

No entanto, nas últimas semanas uma tendência parece estar se formando a respeito da relação entre o Movimento Escola Sem Partido (MESP) – as pessoas que o coordenam e a sua base de apoio – e as proposições legislativas que pretendem institucionalizar as propostas do movimento como lei. É importante estar atento para essa nova configuração, pois ela pode indicar uma alteração na estratégia do movimento para se adaptar às mudanças que os debates em torno de suas propostas para a educação brasileira estão sofrendo desde 2014.

Miguel Nagib faz a autocrítica (?)

O primeiro indicativo dessa trajetória de remodelação aparece numa matéria do portal Justiça em Foco de 28 de março, onde consta uma declaração de Miguel Nagib, fundador e coordenador do MESP, afirmando haver na redação do projeto de lei 867/2015 – atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, com a pretensão de inserir o Programa Escola Sem Partido no sistema nacional de ensino – um trecho inconstitucional. O extrato em questão é o artigo 3º do projeto, que determina que:

são vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

A declaração de Nagib na reportagem é a seguinte:

“Da maneira como está redigido o artigo, qualquer conteúdo que pudesse estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais seria proibido, inclusive conteúdos científicos, o que é inaceitável”, disse o procurador. Se o texto for aprovado com essa redação, segundo Nagib, um professor não poderia ensinar, por exemplo, a Teoria da Evolução, que contraria o Criacionismo, defendido por algumas religiões. “A escola não pode cercear a liberdade de aprender do estudante, de conhecer os conteúdos científicos em razão das convicções religiosas que existem na sociedade. O Estado laico tem a obrigação de ensinar ciência.”

A matéria também nota que, apesar das considerações de Nagib, o relator do projeto na Câmara, deputado Flavinho (PSB-SP), que já se pronunciou inúmeras vezes como favorável ao projeto, afirmou não ter decidindo ainda sobre a questão do artigo 3º.

É importante ressaltar que, atualmente, o anteprojeto de lei federal, base para o projeto de lei 867, não possui um dispositivo semelhante a esse por já ter sofrido algumas modificações ao longo do tempo. Entretanto, as primeiras versões do anteprojeto possuíam o trecho em questão que agora Nagib acusa de inconstitucional. O curioso aqui é o tom que o advogado usa para se referir ao trecho, como se fosse uma crítica externa, como se ele não fosse o autor. É possível verificar essa informação no texto do projeto de lei do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PSC-RJ) para instaurar o Programa Escola Sem Partido no estado do Rio de Janeiro. O projeto de Bolsonaro foi o primeiro do tipo a ser apresentado no Brasil, ainda em 2014. Segundo o próprio Nagib, Bolsonaro o teria convidado para converter as proposições de seu movimento em um projeto de lei, o que, posteriormente, foi expandido para os anteprojetos (PENNA, 2016).

No artigo 2º do projeto de Bolsonaro, fica definido que:

É vedada a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula, bem como a veiculação, em disciplina obrigatória, de conteúdos que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos estudantes ou de seus pais.

Se o problema identificado por Nagib aparece desde a concepção dos projetos de lei baseados no MESP, que foi responsabilidade do próprio, então o que explica que o coordenador do movimento esteja se voltando contra a obra de sua autoria?

Fogo amigo

Um segundo caso trata de um artigo publicado no site do Instituto Liberal em 4 de abril, onde a autora, a pedagoga Aline Borges, tece amplas críticas aos projetos derivados do movimento, afirmando que medidas contra a “doutrinação ideológica” na educação são muito necessárias, mas que a solução proposta pelo MESP é “um equívoco, muito mais pela sua ineficácia do que pelo seu conteúdo (que também não é uma obra-prima, admito)”.

A crítica de Borges é menos estranha pelo seu conteúdo do que pelo espaço onde ela está sendo vinculada e divulgada. O Instituto Liberal, até o momento e especialmente através de seus principais representantes – como Rodrigo Costantino, seu presidente – nunca pouparam elogios ao MESP e suas iniciativas políticas. Constantino, então, sempre foi um grande entusiasta:

Após décadas a fio de ocupação vermelha, há, pela primeira vez, uma tentativa de reação por parte de cidadãos cansados da doutrinação ideológica em nossas escolas e universidades. Falo do movimento Escola Sem Partido, que inspirou projeto de lei homônimo. Que ele tocou na ferida é algo que fica claro pela forte reação da patota organizada. São dezenas de artigos deturpando o conceito do projeto, pintando-o como censura ou obscurantismo, tudo para tentar resguardar o modelo atual de doutrinação.

 Borges, por outro lado, pinta uma imagem bem menos grandiloquente das pretensões do MESP:

O “Escola sem Partido” tem por objetivo (ainda que falhe na sua abordagem), permitir que a escola seja espaço de debate e comparação, garantindo o pluralismo teórico, que nada tem a ver com a catequese que hoje é realizada nas escolas, sob a justificativa de que o modelo da esquerda é o mais democrático, o mais justo, o mais igualitário, o mais crítico, e o único detentor das boas novas do mundo.

Honestamente, é de uma ingenuidade pensar que esse projeto terá alcance local nas escolas de todo o país. Ele apenas gerará uma onda mais violenta, combativa e sem efeitos positivos duradouros.

Não obstante, até mesmo Ana Maria Campagnolo, figura pública da direita antifeminista nas redes sociais, que já falou em alguns eventos do movimento, deu indícios esta semana de um certo afastamento do MESP. Talvez não um afastamento, mas certamente uma atitude inesperada de quem costuma defender o programa abertamente. Em uma entrevista por email sobre o processo que ela ora move contra uma professora da UDESC por “cristofobia” ela disse que “[está] farta de relacionarem meu processo ao Programa Escola Sem Partido”.

É curioso que, assim como Nagib também parece estar fazendo no primeiro exemplo mencionado, os defensores do movimento – ou simpatizantes relutantes no caso de Borges – estejam absorvendo aspectos das críticas comumente feitas ao MESP e aos projetos de lei derivados dele e transformando-as em ferramentas para reestruturarem seus posicionamentos e continuarem acusando o problema da “doutrinação ideológica”.

O desaparecimento do projeto de lei 1411/2015

O último exemplo está nas mudanças que ocorreram na tramitação do projeto de lei 1411/2015. De autoria de Rogério Marinho (PSDB-RN), outro entusiasta do MESP na Câmara dos Deputados, originalmente o projeto visava tipificar o crime de “assédio ideológico”, determinando pena de 3 meses a um ano com multa para quem:

Expor aluno a assédio ideológico, condicionando o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou constranger o aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente

Posteriormente, as disposições do projeto foram amenizadas. Com um substitutivo, o relator do documento na Comissão de Educação, deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) – também autor do projeto 867/2015 – determinou que a tipificação de crime seria alterada para contravenção penal, tornando as punições mais brandas para aquele que praticasse o famigerado “assédio ideológico”. Assim, o projeto recebeu parecer favorável e seguiu com sua tramitação.

No entanto, no último 5 de abril, o próprio Rogério Marinho apresentou requerimento à mesa diretora da Câmara pedindo a retirada de seu projeto de tramitação. O pedido foi aceito e o projeto teve sua circulação encerrada no dia 12 de abril.

Considerações finais

O que vemos, então, é que as estratégias do MESP e de seus apoiadores vêm mudando, assumindo um posicionamento duplo: canibalizar elementos que até o momento eram parte intrínseca das iniciativas do movimento; absorver certos aspectos das críticas que vêm sendo feitas a ele desde muito tempo. Nesse processo que une autodestruição parcial com apropriação de argumentos da oposição, pode-se suspeitar de que o movimento esteja querendo se tornar mais palatável junto à certos setores da opinião pública que, ainda não completamente adeptos ao ideário do MESP, possam ver as suas pretensões políticas com desconfiança, ou suspeitar do desgaste que vem sofrendo em algumas de suas frentes de atuação.

Os exemplos de Nagib e Borges podem servir para explicar, por um lado, essa estratégia de combater o desgaste do movimento. Paralelamente a essas mudanças das últimas semanas, o MESP sofreu algumas derrotas importantes, especialmente no âmbito jurídico. A suspensão da Lei Escola Livre – um análogo do anteprojeto do MESP que chegou a ser aprovada no estado de Alagoas – e as várias críticas feitas a ela pelo relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade que levou à interrupção, o ministro do STF Roberto Barroso, colocou em risco os argumentos de autoridade de que Nagib se valia para exaltar a legitimidade do anteprojeto.

O caso da decisão de Rogério Marinho de retirar seu próprio projeto de lei de tramitação, mesmo com o parecer favorável da Comissão de Educação, pode ser visto como uma forma de contornar possíveis desconfianças quanto ao radicalismo dos aliados do MESP. Um dos argumentos mais comuns dos defensores do movimento é o de que os projetos de lei baseados no MESP não pretendem nada mais do que a afixação de cartazes nos estabelecimentos de ensino que informem a comunidade escolar dos “Deveres do Professor”, uma série de normas que, segundo os apoiadores do movimento, deveriam ser reforçadas como forma de combater o perigo da “doutrinação ideológica” – para críticas a esses posicionamentos, veja aqui. Porém, a própria existência de um projeto como o 1411/2015 é uma contradição a essa retórica. Apesar de não constar na relação de projetos apensados que tramitam juntamente ao 867/2015, o projeto de Marinho é carregado do discurso do MESP, assim como a atuação do deputado enquanto figura pública, dentro e fora da Comissão de Educação da Câmara. Retirar o 1411/2015 da equação significa consertar uma das principais brechas que o MESP tinha aberto para a crítica de que o discurso do movimento criminaliza de fato a atuação de professores.

É necessário ficarmos atentos a esses indícios de mudança pelos quais as bases de apoio do MESP vêm passando. Se não adaptarmos nossas próprias abordagens em relação ao movimento, perderemos a batalha mais importante contra o MESP, a batalha pelo discurso e pela narrativa dos eventos. Talvez devamos fazer como Nagib e lembrar do quão importante é aprender com a Teoria da Evolução: adaptar-se é sobreviver.

Fontes e referências

MOURA, Fernanda Pereira de. “Escola Sem Partido”: relações entre Estado, educação e religião e os impactos no ensino de história. 189 f. Dissertação – (Mestrado Profissional em Ensino de História) Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

PENNA, Fernando. Programa “Escola Sem Partido”: Uma ameaça à educação emancipadora. In: GABRIEL, C. T.; MONTEIRO, A. M. e MARTINS, M. L. B. (org.) Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas de história. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016

Acesso aqui

 

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