Renata Aquino
Ontem, dia 21/02, aconteceu um debate na TV Câmara sobre projeto de lei “escola sem partido”. Exibida no programa Expansão Nacional, a discussão contou com a participação da subprocuradora geral da República e procuradora federal dos direitos do cidadão, Deborah Duprat, o advogado e criador do movimento “escola sem partido”, Miguel Nagib e os deputados federais Glauber Braga (PSOL-RJ) e Marcos Rogério (DEM-RO).
Esse debate foi promovido num contexto em que a Câmara dos Deputados vem discutindo o tema do “escola sem partido” frequentemente, desde que a comissão especial sobre os projetos começou a realizar audiências públicas semanais. Durante a discussão foi repetida constantemente a ideia de que a única novidade proposta é a afixação de um cartaz com os “Deveres do Professor”, com questões já garantidas pela Constituição Federal e tratados internacionais.
Primeiro, para tirar isso logo do caminho, é necessário colocar que essa afirmação é pura e simplesmente falsa. Diversos exemplos factuais podem ser levantados para comprovar o caráter de censura do projeto e de que ele traz muito mais novidades do que seus defensores admitem. Atualmente, os anteprojetos de lei sugeridos nos sites do movimento “escola sem partido” proíbem explicitamente abordagens pedagógicas que utilizem os estudos de gênero.
Art. 2º. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero. (ANTEPROJETO ESTADUAL)
O ataque ao espantalho chamado de “ideologia de gênero”, um fenômeno mundial dentro do qual o “escola sem partido” é simplesmente um dos seus braços aqui no Brasil, pretende proibir que professoras e professores façam qualquer esforço no sentido de tratar as questões de gênero e de orientação sexual como vem sendo feito na academia há várias décadas: usando gênero como uma categoria histórica e social, tratando explicitamente de como “ser homem” e “ser mulher” é algo que se modifica ao longo do tempo. Retirei o artigo acima do anteprojeto estadual, mas ele está presente também nas versões federal e municipal.
O projeto de lei 867/2015, de Izalci Lucas (PSDB-DF), que pretende inserir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) o “programa escola sem partido” é de 2014 e ainda não contém o artigo citado acima – o movimento ESP comprou a briga contra a “ideologia de gênero” inserindo este artigo no anteprojeto somente na segunda metade de 2015. Porém, na árvore de projetos apensados que a comissão especial analisa há um projeto de lei de número 1859/2015, assinado por 14 deputados e uma deputada, que representa uma censura escrachada à discussão sobre gênero na escola cuja base argumentativa e apoiadores são os mesmos do famigerado movimento. O PL propõe inserir na LDBEN um único parágrafo de simplicidade estarrecedora:
Art. 3º…………………………………………………………………………
Parágrafo único: A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual.”
E, logicamente, onde há censura, é impossível dizer ao mesmo tempo que se defende a pluralidade de ideias, um argumento que apoiadores do projeto utilizam ad infinitum a despeito da flagrante incoerência. Para os entusiastas do “escola sem partido”, pluralidade só existe desde que os e as educadoras não adotem projetos pedagógicos que discordem da visão do movimento sobre o que é ser homem, mulher, ou o que constitui uma família. Onde eles enxergam algo que discorde da moral cristã — a maioria dos membros da comissão especial apoia o projeto e faz parte da frente parlamentar evangélica — haverá acrobacias argumentativas do tipo “direito dos pais à educação moral dos filhos”, simplesmente não se importando com o fato de que existem famílias que querem que suas crianças e adolescentes discutam gênero na escola, famílias homoafetivas que teriam sua existência (!!!) mais aceita pela sociedade se pudessem ser tratadas como normais. Nem mais, nem menos: normais.
A imagem abaixo é um trecho de um post no blog de um professor de Goiânia chamado Orley José da Silva, com mestrado em letras e linguística e estudos teológicos. Ele é um apoiador público e muito ativo do “escola sem partido”, já tendo representado o movimento em eventos e audiências públicas tanto em nível local como federal. Também é defensor da família e contra o aborto. O título do post é “A normalização dos modelos de família gay e lésbico no livro didático de língua inglesa”.

Ele analisa como o livro traz imagens e exercícios que normalizam famílias homoafetivas e conclui:
(…) O livro, ao esquecer a Constituição, isto com a finalidade de institucionalizar novos modelos de família para crianças em fase de formação psico-social, trai a confiança da lei. Mais ainda, trai também a confiança dos cidadãos que vivem debaixo desta Constituição quando prepara os filhos para burlarem o paradigma familiar dos pais. (…)
Aqui fica muito óbvio que, para o autor, a lei só serve para a família de modelo tradicional, e que considerar normal outros modelos de família é uma violação da Constituição. Esta opinião é compartilhada, obviamente, pelo criador do movimento, que semana passada na Câmara dos Deputados considerou violação dos direitos dos pais que adolescentes estudantes do Ensino Médio — que segundo a LDBEN esta etapa do ensino compreende adolescentes de 15 a 17 anos, ou seja, um grupo etário que tipicamente está começando sua vida sexual e confrontando-se mais diretamente com os papéis de gênero que a sociedade espera deles — façam atividades escolares onde relacionamentos homoafetivos apareçam como normais e como expressões de amor. O vídeo pode ser visto em nossa página no facebook com a nossa crítica na descrição
O “escola sem partido” é um movimento abertamente misógino. Com seu incentivo à censura nas escolas de questões e estudos de gênero, isto é, a historicidade dos gêneros masculino e feminino e como isso foi amplamente utilizado para oprimir as mulheres ao longo do tempo, percebe-se uma disposição para continuar reproduzindo esses meios de opressão. A lógica é a da defesa de um status quo que nos mantenha submetidas a papéis e modos de ser tradicionais e opressores. É elucidativo observar em torno de quais “polêmicas” esse grupo mais se mobiliza. Por exemplo: pesquisando o site a fundo vê-se que a crítica ao ENEM como uma prova “ideologizada” não começou em 2015, quando da ridícula polêmica sobre a questão que citava Simone de Beauvoir; foi quando o tema da redação não deu espaço para negar a violência doméstica sofrida pelas mulheres que eles decidiram entrar com representação contra o INEP argumentando inconstitucionalidade da exigência de respeito aos direitos humanos na prova.

Por que eles consideram inconstitucional? Oras, porque alguém deveria ter o direito de dizer na redação que, por exemplo, como exemplifica Nagib neste texto aqui, algumas mulheres sofrem violência porque demonstram um certo tipo de comportamento (!!!). Porque, diz ele no mesmo texto, impor que o/a aluno/a “não rompa com valores como cidadania, liberdade, solidariedade, e diversidade cultural” significa obrigar a uma certa opinião sob pena de não entrar no ensino superior.
Quando se trata de gênero é incontestável e inequívoco o autoritarismo, a misoginia, homofobia e a transfobia do projeto e principalmente das ações do movimento. Vê-se como em sua prática o movimento “escola sem partido”, que arroga para si o papel de paladino da defesa de uma educação plural e de ideias diversificadas, realmente dá sentido aos valores abstratos que defende quando está preocupado em parecer democrático. Valores como liberdade, cidadania, democracia, embora defendido ao extremo por eles na comissão especial como se fossem os últimos democratas deste país, só servem quando utilizados para defender o seu projeto. Quando nós, educadores e educadoras, mobilizamos os mesmos valores para a longo prazo famílias homoafetivas, mulheres, pessoas gays e trans, pessoas negras, religiões não-hegemônicas e afins, terem suas existências mais respeitadas e deixarem de ser vítimas de violências diversas por causa destas questões, somos “doutrinadores”, “molestadores”, “militantes disfarçados” e daí pra pior.
Só esta breve análise de alguns dentre os muitos momentos e pontos onde o ESP deixa claro suas incoerências já é o bastante para desmontar sua base. Ele não defende a pluralidade de ideias, ele não defende a liberdade de cátedra, ele não defende os direitos de alunos e alunas — a não ser que se trate dos modos de ser e ver o mundo dominantes, especialmente pela moral cristã. Mas não é só quando se trata de estudos de gênero que a amplitude de censura do projeto fica evidente.

Frequentemente aqueles/as que defendem o projeto tratando de casos de “doutrinação ideológica” — algo próximo de uma definição disso pode ser encontrado aqui — usam de exemplos e não de definições para demonstrar seu ponto. Uma definição possível reunindo o que eles mais dizem é que se trata de uma prática onde o/a professor/a, aproveitando-se da sua posição em sala de aula, leva os alunos e alunas a pensarem deste ou daquele jeito, omitindo informações e/ou correntes teóricas dissonantes, simplificando assuntos, desrespeitando a educação que os e as jovens recebem em casa, usando a aula para “desequilibrar o jogo político”. É geralmente neste momento que eles se passam por democratas e defendem a pluralidade de ideias, espaço para todas e todos se expressarem, uma atuação profissional do/a professor/a eticamente preocupada, etc. É geralmente neste momento dos debates que se diz o seguinte: “se vocês também acham que tem que haver pluralidade, que o/a professor/a não pode favorecer ou prejudicar alunos/as por causa de preferências políticas e ideológicas, então não há porque discordar de nós”. De fato, no debate de ontem na TV Câmara, o advogado (ele não é professor! nunca o vimos se identificar como professor, pelo contrário, ele se define como um pai preocupado) Miguel Nagib em sua fala de abertura diz que o projeto gera polêmica desnecessariamente, porque se trata de afixar um cartaz com coisas com as quais todos concordam e que já estão em várias legislações — como disse no início deste texto, ele frequentemente trata os textos como se tivessem um sentido absoluto independente do contexto, sem dar indicações de como as práticas que o seu movimento embasa nestas coisas são extremamente autoritárias e deturpadas.
Este é o ponto nevrálgico da questão. Nos projetos e anteprojetos de lei já há problemas, obviamente. Usando ainda o anteprojeto estadual, que para mim é o mais significativo porque estamos falando de jovens que já estão entrando na vida pública, se tornando eleitores, votando, ocupando escolas, participando de manifestações, enfim, agindo politicamente, já se vê ali coisas absurdas: o artigo 2º que proíbe questões de gênero; o impedimento de professores/as chamarem para atos públicos; a liberação das escolas privadas de qualquer restrição mediante conscientização dos pais, porque nisso fica óbvio o ataque direcionado à educação pública; o tratamento dos alunos como “audiência cativa”, igualando professores, por inferência, a sequestradores.

No entanto, como os textos não têm significado absoluto, mesmo quando se defendem coisas louváveis como não poder prejudicar alunos/as por questões pessoais, o ensino de várias correntes teóricas sobre cada assunto, liberdades de aprender e ensinar e de consciência, há de se prestar atenção à prática do ESP para ver como e onde estes valores são mobilizados. Meu desafio neste texto é mostrar como o movimento em questão, a despeito de alegar que se fundamenta sobre valores democráticos, os deturpa para agir na direção contrária. É absolutamente fundamental que estudemos as práticas do ESP para ver que sentidos eles dão a estes valores.
Creio já ter respondido a este desafio no que se trata das questões de gênero. Mas o ESP também se baseia em falácias, mentiras e descontextualizações quando se trata da sua preocupação mais antiga, a “doutrinação político-ideológica”. De modo geral a sua estratégia é entender estes termos de modo bem amplo e sempre considerando que qualquer inclinação que apareça na sala de aula está ali para favorecer algum partido do jogo político. A partir daí, eles partem para a descontextualização: professoras e professores são considerados doutrinadores por meio de um trecho de uma aula ou atividade, já partindo para a divulgação da imagem do docente e incentivo à perseguição do/a mesmo/a.
Alguns exemplos: esta professora de sociologia do Paraná, do ensino médio, passou aos estudantes como atividade fazer uma música tratando dos principais conceitos de Karl Marx, conteúdo do bimestre, e foi considerada doutrinadora tendo aparecido no facebook e no site do movimento. A professora sofreu perseguição devido à viralização do vídeo e foi afastada do trabalho por algumas semanas após o ocorrido. Quando ela foi entrevistada ficamos sabendo que este é seu método de trabalho com vários conteúdos do currículo.

Parte da estratégia do movimento é misturar situações onde a atitude do professor/a foi de fato questionável com outras situações onde este não é o caso — e como sempre, sem contextualização, com poucas informações sobre a situação em que tais gravações foram feitas. Foi assim que Nagib agiu na audiência pública já citada, do dia 15/02 na comissão especial. Ele mostrou três casos de “doutrinação ideológica” antes de falar sobre gênero: os primeiro e terceiro casos, na medida em que se pode julgar um áudio descontextualizado, são problemáticos; o segundo, no entanto, que conta com vídeo, mostra um professor aparentemente num espaço aberto da escola comunicando e explicando o porque que o corpo docente dali faria uma paralisação no dia seguinte. Durante sua fala o professor se identifica completamente, explica suas motivações, diz que os alunos e alunas deveriam participar da manifestação dali a alguns dias, mas que não era seu papel obriga-los. Dado que a fala acontece num contexto de informe, é perfeitamente normal num ambiente escolar em uma democracia onde os cidadãos se mobilizam a favor ou contra certas coisas acontecendo na esfera pública.

ISTO NÃO É SÓ SOBRE UM CARTAZ
É por isto que não podemos comprar, de modo algum, jamais, em nenhum momento, que este movimento e projetos de leis homônimos só reafirmam valores já existentes na Constituição. Temos que verificar sempre a prática deste grupo e levar em conta o quadro que eles pintam para recontextualizar e ressignificar trechos da Constituição e tratados internacionais de maneiras muitas vezes incondizentes com as intenções manifestas destes textos nas suas épocas de produção. O “Escola Sem Partido” não é e nunca foi sobre a afixação de um cartaz. Ele é o que suas próprias ações inequivocamente demonstram.
O que mais me preocupa nisso tudo é como nós, professores, estamos apáticos, calados e conformados com tudo isso. Primeiro a reforma no Ensino Médio foi aprovada. Sem debates. Não nos posicionamos. Agora esse “movimento” ultrajante… E nós? Silenciosos. Precisamos acordar e nos mobilizar ou ficaremos estagnados em uma educação que deturpa direitos e liberdades individuais se valendo de um discurso conservador, mas que vem ganhando força em meio ao caos do nosso país.
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