O Escola sem Partido voltou? 

O empreendedorismo bolsonarista nunca parou.

Renata Aquino

Mas ele tinha ido embora?

No governo de Jair Bolsonaro não houve decreto do Programa Escola sem Partido nem envio ao Congresso de um projeto do poder executivo para isso, é verdade. Mas já em 2019 vimos falas de alguns arrependidos; algumas figuras que, após alimentarem o monstro, e terem sido até eleitas graças a isso, de repente começaram a tratar a iniciativa como extremista demais. Fernando Holiday e Kim Kataguiri estão entre essas figuras, e até mesmo Olavo de Carvalho.

Olavo, aquele que difundiu no Brasil a teoria conspiratória do marxismo cultural, pânico que está na raiz do ódio às professoras e professores, começou a dizer que defendia algo na linha de “escola com todos os partidos” já em 2018, logo após a vitória de Bolsonaro, e criticando a estratégia do projeto de lei. Obviamente, ele não disse que a “doutrinação” não existia; a discordância era quanto à estratégia: ele buscou se afastar da estratégia do campo legislativo, defendendo a prioridade do combate cultural

Holiday e Kataguiri, do MBL, aquele grupo que simplesmente realizou uma Marcha Nacional pelo Escola sem Partido em 2017, também mudaram algumas ideias. Holiday disse em abril de 2019 ser errado tratar os professores como o problema da educação, e repetiu a afirmação poucos meses depois criticando o incentivo à filmagem de professoresmas ainda elogiando o “projeto original” do Escola Sem Partido, essa figura mitológica segundo a qual em algum momento o “combate à doutrinação” não era extremo. Kataguiri, por sua vez, após ter sido eleito deputado federal em 2018 para aplicar o Escola sem Partido, também fez críticas ao incentivo para filmar aulas, embora menos intensas que as de Holiday. Ou seja, a existência de “doutrinação” não foi negada, mas houve um ensaio de afastamento da estratégia naquele momento muito ligada a Miguel Nagib, os projetos de lei “Programa Escola sem Partido”. 

Digo tudo isso para explicitar um fato muito importante: durante o governo Bolsonaro o Programa Escola sem Partido não virou lei, mas as suas concepções de educação, professores e alunos eram compartilhadas por uma parte significativa das pessoas no governo. Para os funcionários e funcionárias do Poder Executivo que chegaram ali com o novo presidente, assim como para a base do governo no Congresso, a existência da “doutrinação” era um fato básico da realidade, característica a ser sempre levada em conta e em cima da qual construir políticas públicas para fortalecer a ordem e a família em oposição à escola. O PECIM vem daí, o trabalho todo para legalizar o homeschooling/ensino domiciliar, também. O Disque 100 foi usado para denunciar professores por “violência institucional” contra crianças e adolescentes no ambiente escolar, termo atualmente candidato para gerar outros projetos de lei na linha do que Ana Campagnolo fez em Santa Catarina.

Além disso, dezenas e dezenas de vezes Bolsonaro falou da “ideologia de gênero” em falas públicas, difundiu ódio contra professores… Entre 2019 e 2022 foi rotineiro o governo tratar professoras como criminosas. Assim a gente entende por que o órgão responsável pela educação regular do país ficou como ficou

O que está acontecendo com o Escola sem Partido agora?

Depois de a “doutrinação” se estabelecer 1) como fato para os grupos que vivem numa realidade paralela, e 2) como estratégia política interessante para empreendedores políticos, vemos agora essa pauta ser reaquecida com a “queda do líder” que sustentava essa realidade enquanto ocupava a presidência. Alguns projetos de lei novos apareceram; alguns antigos foram votados; uma lei oriunda de proposta da deputada Ana Campagnolo (PL-SC), cujo conteúdo é cópia do “Programa Escola sem Partido”, foi promulgada. E na quinta-feira agora, dia 23 de março de 2023, haverá na Câmara dos Deputados um evento chamado “1º seminário sobre doutrinação ideológica no ensino”, organizado pelo influencer e deputado de extrema direita Gustavo Gayer (PL-GO), conhecido dos pesquisadores sobre a desinformação e a extrema direita no YouTube.

Figuras públicas bolsonaristas agem como empreendedoras do mundo político. Abraçar o combate à “doutrinação” é ser disruptivo, ousado, inventivo, corajoso para homens; defesa valente e exemplar da família para mulheres, ousadas em se oporem à “hegemonia feminista”. O fim do governo Bolsonaro, o capitão dessa pauta, abre uma oportunidade política para que outras figuras tentem se tornar as referências para essas ideias que são muito eficientes em gerar mobilização e barulho.

Além dessa disputa por território, encenar esse tipo de personalidade (defensor de crianças, guerreiro contra a “doutrinação”, etc) gera engajamento nas redes, algo que pode ser convertido em votos e capital econômico, e em avanço dessa pauta em vários grupos sociais. Um maior engajamento nas redes possibilita que essas figuras criem uma relação com seus leitores e futuros eleitores mais intensa do que o comum; um vínculo intenso que pode ser mantido e conduzido, a depender da habilidade do influencer/político/coach/etc, e que possibilita ao influencer acessar diversos conhecimentos sobre seu público. 

Isso significa que: divulgar imagens não autorizadas de professoras “doutrinando” é uma fonte de lucro político e potencialmente econômico para figuras que já fazem parte ou querem entrar no mundo político institucional. Isso tem consequências muito concretas para o trabalho docente: só a divulgação desse conteúdo já é, em si, uma forma de perseguição, e se a sociedade percebe uma onda de crescimento nesse tipo de conteúdo, isso aumenta a insegurança de professoras e professores em sala de aula. Há anos que educadoras têm praticado autocensura para evitar problemas, e embora infelizmente ainda não tenhamos dados amplos sobre esse fenômeno, o que existe indica que a autocensura está relacionada à mensuração que uma educadora faz das probabilidades dela sofrer perseguição ao adotar certa metodologia ou abordar certo conteúdo; logo, quando certo tema vai sendo considerado pela sociedade como “controverso”, aumenta a possibilidade de um educador evitá-lo em nome de sua segurança profissional. 

Gustavo Gayer sabe utilizar as redes a favor da extrema direita. Ele usa as facilidades para isso embutidas na infraestrutura dessas plataformas que monopolizam praticamente toda nossa comunicação. Como o jornalista de dados Gustavo Felitti demonstra há muito tempo, o conteúdo produzido por Gayer no YouTube participa da dinâmica sistêmica da direita de produção e circulação de mentiras, articulando Telegram e YouTube, de maneira a evitar controle de conteúdo falso nessas plataformas (quando ele existe): ele faz vídeos, circula no Telegram, e depois exclui ou torna secretos para evitar a mira do STF. 

Aliás, Felitti já foi perseguido por Gayer devido ao seu trabalho. É óbvio que quem persegue professores também vai perseguir a imprensa: professoras e jornalistas fazem a verdade aparecer.

Então o que fazer?

Se todo o barulho em torno do “combate à doutrinação” é fonte de lucro político e econômico para uns, e censura e barreiras no acesso ao conhecimento para outros, o que fazer? Como combater o uso constante que será feito das imagens deste seminário, das imagens de suposta doutrinação que têm sido difundidas este ano, e a perseguição a professoras que isso já gerou e pode gerar ainda mais?

Ainda estamos aprendendo a nos orientar política e estrategicamente nesse mundo onde a denúncia pública de um ato violento muitas vezes contribui para a intensificação do mesmo. É importante aceitarmos que os nossos inimigos políticos realmente querem o fim do direito à educação e que os argumentos deles estão consideravelmente difundidos; e que táticas de constrangimento e de conscientização do público, por sua vez, devem levar em conta uma esfera pública profundamente fraturada, que dificulta em muito a adesão coletiva a valores como igualdade e respeito para todes.

Também é importante termos claro que a infraestrutura da comunicação atual contribui para a difusão de pautas da extrema direita. Ou seja, nossos valores, nossas ideias, são em parte incompatíveis com a estrutura sóciotécnica que utilizamos atualmente.

Agora nós somos tomadas pela necessidade de pensar como vamos agir. Tivemos tempo pra acumular diagnósticos sobre a maneira como a extrema direita age, e tivemos toda a discussão sobre esse assunto durante o ciclo eleitoral de 2022 com o “janonismo cultural“. Hoje em dia temos uma compreensão razoável até do ritmo dos avanços golpistas e dos recuos de Bolsonaro: era necessário garantir um campo incerto, confuso, caótico, com muito ruído na comunicação, para ao mesmo tempo ativar a mobilização nas redes e evitar a responsabilização judicial pelos atos criminosos. 

Nós aprendemos alguma coisa no jogo de captura de atenção. Por muitos meios, o debate “público”, se é que isso ainda existe, acontece atualmente não por meio da troca de argumentos acumulados ao longo dos dias em textos na Folha de SP, mas pela criação de memes que viralizam e de falas curtas e provocativas, que têm sucesso ao conseguir inverter o pólo de atenção do argumento ao qual elas respondem.

Por isso, além da vigilância constante para adaptarmos nossa argumentação e estratégias ao que o inimigo vai fazendo, me parece importante não embarcarmos na divulgação maciça do seminário de quinta-feira. O que não significa não falar dele: vamos falar, mas nos nossos termos. O que significa falar sobre “doutrinação” para nós em nossos termos, de uma forma que puxe o público para o nosso campo de ideias? Significa divulgar formas de autodefesa contra a censura, memes sobre a hipocrisia dos defensores da família, humor e chacota em cima do trabalho fácil que é gritar “doutrinação!” enquanto boa parte das escolas do país não tem sequer banheiro pra estudantes, materiais visuais que sejam didáticos e objetivos em expor as inversões que o campo familista faz.

Meme sobre o ensino domiciliar / homeschooling, onde o argumento “autoridade dos pais” é utilizado constantemente. A imagem usa de humor pra expor um apagamento que o homeschooling faz: os direitos de crianças e adolescentes.

 

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