De onde vem o “consenso” sobre a BNCC?

Priscilla Pantaneira*

Sabia que algo me deixava inquieta em relação a deputada federal Tabata Amaral (PDT/SP) para além do seu projeto de lei que versa sobre “valorização” da carreira docente [1]. No programa da Mariana Godoy, feito no começo do mês de Maio, a deputada afirma que a prioridade é a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), política em torno da qual existiria um consenso geral. Sem chances!

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Fonte: Câmara dos Deputados

Aqui precisamos ponderar: quem apoiou a BNCC? Os grupos de apoio mais efusivo, que ganhou destaque no cenário midiático é aquele que nós no debate sobre educação pública, chamamos de empresários reformadores. Setores que representam os interesses privatistas do campo educacional, como o Todos pela Educação (TPE).

Segundo esses segmentos, a BNCC potencializaria políticas e ações que, juntas, podem reduzir desigualdades educacionais. Para as redes, ela assumiria o papel de referência para a construção dos currículos. Para os professores, ela seria um instrumento fundamental para a prática em sala de aula.

O maior patrocinador financeiro e político de organizações como o TPE é a Fundação Lemann, mas há também outros apoiadores de peso. A 3ª versão da BNCC deixa claro o envolvimento desse setor na sua elaboração. No documento pode se ler “Com apoio do movimento pela base“, um grupo formado por representantes direta ou indiretamente ligados ao setor empresarial e que tiveram envolvimento direto no processo de construção da Base. [2]

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Fonte: Todos Pela Educação

Uma das coisas nítidas no desenvolvimento da BNCC foi sempre dar preferência para as fundações privadas, nunca às universidades, pesquisadores e entidades da área da educação. Para esses, a BNCC não foi, nem de perto, consenso. A única concordância geral entre tais grupos no que concerne à Base foi que só foram ouvidas as fundações privadas.

A reforma empresarial da educação parte do pressuposto que se o aluno não aprende é porque a escola não ensina (ou não sabe o que ensinar). Torce dados de pesquisa para fazer valer esta tese. Na 3ª versão da BNCC, nem uma palavra é dita sobre a péssima infraestrutura das escolas, sobre os professores horistas que “voam” como borboletas de escola em escola, sobre a superlotação das salas de aulas e tantos outros problemas crônicos.

Em outubro de 2018 o Conselho Nacional de Educação (CNE) empossou cinco novos membros: Maria Helena Guimarães, Mozart Neves Ramos, Marco Antônio Marques, Sérgio de Almeida Bruni e Robson Maia Lins. Eles estarão por lá nos próximos 4 anos. Todos diretamente ligados aos reformadores empresariais.

Como observou o prof. Luiz Carlos de Freitas sobre esses reformadores no CNE:

A impressão que passa é que os reformadores estão criando um “bunker” no CNE para defender as BNCCs e a estratégia da reforma empresarial, com vistas a colocar a implementação da reforma fora do alcance de governos futuros.

Antes dessas mudanças convenientes, nem o próprio CNE conseguiu refletir esse suposto consenso de que tanto se fala. Em 2017, três conselheiras do CNE fizeram pedido de vistas e justificaram argumentando que processo foi atropelado e que as contribuições das audiências públicas de debate não foram levadas em conta.

As três são Márcia Angela da Silva Aguiar, Aurina Oliveira Santana e Malvina Tania Tuttman. Expuseram, entre outros aspectos, o que ficou claro ao longo do processo e no resultado final: que a metodologia de construção da BNCC foi linear, vertical e centralizadora:

Assim, ao pedir vista, fomos surpreendidas pela urgência e pela definição intempestiva da Presidência do CNE concedendo apenas uma semana para a elaboração de um substitutivo do Processo e da Resolução da semana destinada a apresentação de um novo Parecer, como foi referido anteriormente, prejudicando a análise de toda a documentação. Esse fato não se justifica e traz constrangimentos, uma vez que compete a esse Órgão de Estado tratar adequadamente as políticas públicas de nosso país, sem açodamento. Infelizmente, a opção do CNE foi pela celeridade em detrimento de discussão aprofundada, como requer a matéria, e isso ficará registrado como uma afronta a esse Órgão Colegiado, sobretudo, se o entendermos como um Órgão de Estado e não de Governo.

O documento com o pedido de vistas das conselheiros é explícito na descrição de como vinha se dando os “debates” em torno da BNCC: celeridade em detrimento de discussão aprofundada e, novamente, negligenciado os debates anteriores. O voto da Conselheira Márcia Angela da Silva Aguiar foi o mais enfático: [3]

Voto contrário por ver celeridade absurda, além de e minimizar a modalidade EJA e a especificidade da educação no campo; desrespeita o princípio do pluralismo proposto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB); fere o princípio de valorização das experiências extraescolares; afronta o princípio da gestão democrática das escolas públicas atenta contra a organicidade da Educação Básica necessária à existência de um Sistema Nacional de Educação (SNE).

No que diz respeito à participação social na criação da Base, posso dizer simplesmente que ela  foi mascarada ao extremo. Em um artigo para o Nexo, o professor e pesquisador Fernando Cássio demonstra como o tal “debate democrático” em torno da BNCC foi esvaziado e limitado ao extremo. Um exemplo disso são os números inflacionados divulgados pelos Ministério da Educação à época da consulta pública sobre a Base (12 milhões de contribuições), passando a impressão de que haveria um envolvimento social amplo na produção do documento e que o resultado final do processo seria consequência desse engajamento aparentemente democrático. Porém, Cássio demonstra que não foi bem assim que a produção desses dados se deu:

A palavra “contribuição” é utilizada de modo indistinto para respostas a perguntas de múltipla escolha e para sugestões de intervenções no texto. Isso significa que um contribuinte único que tenha interagido, por exemplo, com os 279 objetivos relacionados ao componente curricular Língua Portuguesa (entre Ensino Fundamental e Médio) — e, eventualmente, clicado “concordo plenamente” com a clareza e a pertinência/relevância dos mesmos — terá contribuído, segundo o cálculo do MEC, 279 vezes com a consulta (efetuando, a rigor, 558 cliques nos questionários). Dois cliques, uma contribuição.

Em outro artigo, Cássio aborda a questão de que a BNCC é, antes e acima de tudo, uma política de centralização curricular que tem como foco formação educacional centrada no mercado de trabalho e pouco na formação cidadã.

Apesar de todas essas manobras mobilizadas, vale destacar que o controle reivindicado pelo empresariado sobre o desenvolvimento da BNCC não é nem de perto total. Pelo contrário, todo o centralismo e verticalidade em torno da Base só serviu para mascarar as disputas internas durante a produção do documento. Vide o fato de que as modificações mais recentes na 3ª versão não foram guiadas pelas pautas prioritárias dos reformadores empresariais, mas sim por grupos de extrema-direita e fundamentalistas religiosos. Segundo a prof. Fernanda Moura: [4]

Existe uma relação muito estreita do Escola Sem Partido com a última versão da BNCC de ensino fundamental. Um grupo chamado professores contra a ideologia de gênero – que faz parte das redes do Escola Sem Partido e cujo líder é um dos intelectuais orgânicos do ESP – produziu uma BNCC alternativa e fez pressão sobre o ministro da Educação com o apoio da bancada evangélica e conseguiu fazer com que a terceira e, supostamente, última versão da BNCC fosse tão modificada que não pode nem ser considerada ainda a terceira versão, sendo na verdade uma quarta.

No fim, o centralismo e verticalidade característicos da produção da BNCC não garantiu nem um consenso entre aqueles poucos que puderam participar da sua produção. À deputada Tabata Amaral, sugiro rever sua posição sobre serem consensuais tais debates e propostas relativas à BNCC, porque, como está cristalino desde 2015/2016, isso é completamente falso. Sugiro conhecer as posições dos pesquisadores críticos acima citados e conhecer suas ponderações.

***

* Esse texto é baseado em uma sequência de tweets feito no perfil da autora (@CSilvaPry). A versão reproduzida aqui buscou fazer o mínimo de alterações possíveis no texto original

[1] Para ler o PL em questão, acesse aqui; para ler a análise da autora do texto sobre a proposta, acesse aqui

[2] Para mais informações sobre a influência direta do setor empresarial na BNCC, acesse aqui e aqui

[3] Para mais detalhes sobre o desenvolvimento da BNCC a partir do CNE, acesse aqui

[4] Para uma análise mais aprofundada sobre esse fenômeno, acesse aqui

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