Resenha: Ideologia e Propaganda na Educação – a Palestina nos Livros Didáticos Israelenses

Luiza Brandão

Diogo Salles

Para que o ódio possa existir, antes é preciso construir a imagem daquele que deve ser odiado.

A criação de um “outro”, um inimigo que ameaça nossa própria existência, faz parte de muitos tipos de relações políticas. Não podemos excluir o antagonismo da política. Porém, há formas e formas desse elemento se manifestar.

Antagonismo não é algo necessariamente bom ou mau. As articulações que estamos constantemente construindo uns com os outros dependem dessas disputas em torno do que queremos ser ou não ser, das ideias que nos satisfazem politicamente e aquelas que nos ameaçam.

Esse tipo de dinâmica é muito importante para as lutas pela expansão de direitos, como o antagonismo mobilizado contra o racismo, a violência contra mulher, a lgbtfobia, só para dar alguns exemplos; mas ela também pode ser usada de outras formas.

Ao mesmo tempo, antagonismo é particularmente útil pra movimentos antidemocráticos que se baseiam na oposição amigo/inimigo como forma de desumanizar esse “outro” inventado; deslegitimando sua própria existência e toda e qualquer forma de resistência à lógica de dominação instaurada.

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É um cenário marcado por esse segundo tipo de antagonismo que é retratado no novo lançamento da Boitempo, Ideologia e Propaganda na Educação – a Palestina nos livros didáticos israelenses, de Nurit Peled-Elhanan. A contracapa do livro já deixa claro em que termos o estudo de Nurit se desenrola:

Em Israel, os livros didáticos ensinam que a única lógica pertinente às relações entre a maioria judaica e as minorias palestinas é a da eliminação cultural e física dos palestinos. Tais livros reproduzem e legitimam a alterização social de minorias árabes, promovendo assim o chamado “racismo de elite” – um racismo ditado de cima para baixo e inculcado através de livros didáticos, artigos, discursos parlamentares e cultura (…)

Produzidos por editoras, regulamentados pelo Estado, os livros didáticos israelenses se manifestam não só como produtos de um mercado, mas também como um dos mecanismos através dos quais o projeto político-ideológico do sionismo, o imperialismo judaico na Palestina, busca manter sua hegemonia nas suas mais variadas dimensões: militar, geopolítica, cultural e étnico-racial. Todos esses aspectos se relacionam em torno do objetivo comum de eliminar o “outro” palestino.

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Seja através de ilustrações em livros de história, que representam o palestino como um estereótipo saído diretamente das páginas de uma edição de Mil e Uma Noites; seja nos mapas de livros de geografia, que não identificam vilas e cidades palestinas na região da Cisjordânia; seja no simples vocabulário escolhido pelos autores e editoras, que se recusam a denominar os palestinos enquanto tais, ou enquanto cidadãos israelenses, isolando-os no significante “árabe”… Nurit traça os caminhos através dos quais imagens e textos se integram para transmitir e reforçar determinadas mensagens, como a noção de que a etnicidade exclusivamente judaica está acima da cidadania israelense que engloba também a parcela palestina da população e a criação de uma “memória aproveitável” para os interesses políticos dessa etnocracia.

Assim, a educação escolar, os livros didáticos e os discursos neles embutidos se tornam fatores determinantes de uma identidade, mas uma identidade definida pela exclusão, com fronteiras que querem parecer extremamente bem delimitadas em torno da noção de quem somos “nós” e quem são “eles”. É dessa forma que as preferências do grupo passam a valer como preferências dos indivíduos, que os inimigos do grupo se tornam inimigos de todos.

No contexto histórico e político em que as relações entre Israel e Palestina se dão, Nurit também aponta um fator determinante que esta influência se dá: o serviço militar é obrigatório para jovens israelenses (homens e mulheres) e inicia-se assim que concluem a educação básica. A manutenção do status quo sionista dentro dos territórios ocupados se baseia fortemente na polarização “nós” versus “eles”, chegando ao ponto de cidadãos palestinos de Israel terem direitos humanos básicos (como moradia, acesso à água, esgoto e eletricidade) negados. As condições nas áreas ocupadas de Gaza e Cisjordânia são ainda mais flagrantes nesse sentido. Tudo isso tem na educação escolar um elemento central de socialização dos indivíduos nos termos e normas antidemocráticos da etnocracia israelense.

O recorte do livro de Nurit pode dar a impressão de algo muito distante da nossa realidade, mas Ideologia e Propaganda na Educação pode ser lido muito mais como uma janela para um futuro possível, onde o fundamentalismo religioso, o racismo e a apologia ao ódio que imperam na atual predominância da extrema-direita encontra ferramentas ainda mais rebuscadas para se perpetuarem. Especialmente nesse momento de mudança de paradigma nas relações entre Brasil e Israel, é significativo termos um olhar mais atento para a verdadeira dimensão do projeto sionista que os nossos defensores da “civilização judaico-cristã ocidental” abraçam com tanto apreço.

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Ideologia e Propaganda na Educação – a Palestina nos livros didáticos israelenses é um lançamento da Boitempo. A edição utilizada para essa resenha e outros materiais relacionados a ela produzidos por nosso grupo foi disponibilizado pela editora.

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