Declaração sobre a natureza genocida da prática e da ideologia do movimento crítico de gênero

Tradução do Statement on the Genocidal Nature of the Gender Critical Movement’s Ideology and Practice (novembro de 2022) do Lemkin Institute for Genocide Prevention

Tradução de Pedro Machado

Revisão de Renata Aquino

Declaração original aqui (em inglês)

O Lemkin Institute for Genocide Prevention[1] expõe sua preocupação em relação ao aumento de leis direcionadas a indivíduos transgênero e à comunidade trans nos Estados Unidos. A hostilidade anti-trans nos EUA tornou-se uma prática comum da estratégia eleitoral do partido republicano, sendo claramente utilizada para atiçar em seus eleitores o medo de um mundo em mudança evocando um fantasma que se manifesta como uma força malévola e poluidora ligada ao liberalismo, ao pensamento cosmopolita e à democracia. O Lemkin Institute acredita que o chamado “Movimento Crítico de Gênero” que está por trás destas leis é um movimento fascista avançando uma ideologia especificamente genocida que busca a completa erradicação da identidade trans no mundo.

Ideologias genocidas são ideologias que negam ou buscam apagar a existência de um grupo específico por supostas ameaças que este representa aos detentores destas ideologias. O movimento crítico de gênero nega a existência da identidade transgênero e simultaneamente tenta erradicá-la da sociedade. Muitas ideólogas[2] críticas de gênero se identificam como feministas e acreditam estar protegendo as mulheres dos homens. Elas acusam mulheres transgênero de serem homens-às-escondidas, e homens transgênero de serem mulheres que se odeiam. Este movimento, uma peça central na ascensão da direita no mundo ocidental, se vale de leis e políticas que criminalizam identidades e vidas trans para incentivar o assédio e a discriminacao destes indivíduos e de sua comunidade. O Lemkin Institute está alarmado pelo crescente número de tentativas de promulgar políticas e espalhar preconceito que ameaçam o bem-estar e até mesmo a existência de pessoas transgênero.

O movimento crítico de gênero é uma afiliação internacional informal de pessoas e grupos que promovem ideias de extrema-direita que conquistaram um grau de respeito centrista através de uma suposta defesa das mulheres. O movimento alega que as pessoas não podem determinar seu sexo ou gênero, e que a genitália observada clinicamente no nascimento é a determinante final do sexo biológico, assim como marcador permanente do pertencimento de gênero. Focadas (os) principalmente na ameaça fictícia representada por mulheres trans, ideólogas (os) das (os) críticas (os) de gênero acreditam que mulheres transgênero são na verdade homens tentando dominar mulheres cisgênero (mulheres cujo senso de si corresponde com seu sexo de nascimento) imitando-nas e, desta forma, conquistando acesso a banheiros femininos, vestiários femininos, equipes esportivas femininas e outros espaços de mulheres. Elas rotineiramente acusam pessoas trans de serem doentes mentais e acreditam que os pais, familiares e profissionais da medicina que apoiam pessoas transgênero estão cometendo atos imorais contra os indivíduos transgênero (por nutrir “a doença” deles) e contra a sociedade como um todo (por permitir que pessoas e ideias perigosas se capilarizem).

Os constructos ideológicos de mulheres transgênero promovidos por ideólogas (os) críticas (os) de gênero são particularmente genocidas. Elas têm muitas características em comum com outras ideologias genocidas mais conhecidas. Mulheres transgênero são representadas como atravessadoras furtivas de fronteiras que buscam conspurcar a pureza das mulheres cisgênero, da mesma forma que as mulheres Tutsi eram vistas pela ideologia do Poder Hutu Power, e que homens judeus eram vistos pelo antissemitismo nazista. Pessoas trans em geral são enquadradas como figuras que ameaçam a integridade da família nuclear patriarcal assim como a força e a vitalidade de comunidades nacionais, na mesma linha em que os alvos de genocídios étnicos/nacionais são vistos como inimigos cósmicos do grupo ofensor. Assim como alvos religiosos de violência genocida, pessoas trans são frequentemente descritas como de alguma forma sujas, pecadoras, ou contrárias a Deus. Elas são responsabilizadas por uma série de problemas sociais que não têm nada a ver com elas ou com a livre expressão de suas identidades. O Lemkin Institute gostaria de lembrar seus leitores que uma das primeiras bibliotecas  a ser queimada sob o Nacional-Socialismo da Alemanha foi a do arquivo e biblioteca do Instituto de Ciência Sexual Magnus Hirshfield em Berlim, uma instituição pioneira em pesquisas de sexualidade humana e gênero. Os Nazistas, como outros grupos genocidas, acreditavam que a força nacional e o poder existencial só poderiam ser alcançados através da imposição de um binarismo de gênero estrito em sua ”comunidade nacional” racialmente pura. Um binarismo de gênero fundamentalista era um fator-chave das politicas raciais do genocídio Nazista. 

Nos Estados Unidos, o Partido Republicano apresentou um bombardeio de políticas e leis anti-trans em diversos estados desde 2016. De acordo com a American Civil Liberties Union, foram 286 projetos de lei anti-trans apresentados entre 1 de janeiro de 2021 e 13 de outubro de 2022. A maioria dos projetos que passaram e foram promulgados no país eram relacionados à elegibilidade de atletas trans em esportes escolares. Felizmente, muitos dos mais perigosos projetos de lei não foram aprovados (ainda), incluindo o projeto KS SB214 (Projeto de Lei do senado de Kansas 214), que criminaliza cirurgias de redesignação de gênero e terapia de substituição hormonal para menores de idade, e o projeto MO HB2086 (Câmara dos Representantes do Missouri Projeto de Lei 2086), um projeto para proibir um indivíduo de mudar o marcador de gênero na sua certidão de nascimento. Todas estas leis visam criar uma sociedade hostil à própria ideia da identidade trans e na qual é impossível viver aberta e legalmente como uma pessoa trans.

É importante dizer que a realidade da identidade transgênero não pode ser contestada. Pessoas transgênero existiram durante toda a história. Em muitas sociedades, particularmente antes do domínio colonial ocidental, havia instituições sociais com o intuito de incluir espaços para pessoas trans. Pesquisas científicas sobre o desenvolvimento sexual vêm demonstrado a complexidade do sexo biológico e o embasamento biológico para a diversidade de gênero. Ademais, identidade de gênero é uma questão muito privada e subjetiva que se relaciona com realidades profundamente sentidas e as construções sociais que existem na sociedade. É uma parte do processo de expressão humana que é protegida pela Declaração Universal de Direitos Humanos e pela constituição dos EUA, tal qual o direito à vida, à liberdade e à segurança de uma pessoa; proteção igualitária por parte da lei; o direito à privacidade; e a liberdade de expressão. Como outras identidades, identidades de gênero além do binarismo estreito são legítimas e dignas de proteção.

O movimento crítico de gênero, apesar de frequentemente declarar acuidade científica, está na verdade ignorando as mais rigorosas e atualizadas ciências de sexo e gênero. Pesquisas científicas em diversidade de gênero alinham-se com o que conhecemos sobre diversidade biológica de forma geral e contestam o conceito binário fundamentalista de diferenciação de sexo e gênero.

A interpretação fundamentalista do gênero e a obsessão com o binarismo fere  todas as pessoas que não se conformam com estereótipos de gênero tradicionais ao impor normas estritas de expressão e experiência humana através do uso de constrangimento e estigma, não somente as pessoas transgênero. Pesquisas científicas revelam que, pelo contrário, o apoio advindo de pais, escolas, comunidades, assim como sistemas de saúde pró-afirmação de gênero levam à melhoria da saúde mental e das possibilidades nas vidas de pessoas trans e, consequentemente, de todas as pessoas que as amam e as querem bem. Todas as tentativas de intensificar sua marginalização e, de fato, criminalizar identidades transgênero, contribuem diretamente para o alto nível de violência social que já existe contra elas, assim como para o alto nível de desafios de saúde mental e física que existem na comunidade transgênero, incluindo suicídio.

O Lemkin Institute for Genocide Prevention aponta que o movimento crítico de gênero não é sobre proteção das mulheres. Ele se trata de exercer controle sobre os corpos de pessoas marginalizadas e expulsá-las das comunidades de obrigação moral[3] caso elas falhem em se conformar às normas de gênero que lhes foram atribuídas por outrem. Em outras palavras, o movimento crítico de gênero visa controlar os mais profundos aspectos da experiência humana e do autoconhecimento através de agressões genocidas contra uma comunidade historicamente silenciada e marginalizada que só recentemente começou a florescer e ser aceita. O movimento crítico de gênero é uma força social totalitária e genocida que ataca não somente as pessoas transgênero, mas também a todas as instituições democráticas que protegem direitos humanos individuais e coletivos.

Por mais que membras (os) do movimento crítico de gênero possam argumentar que não buscam matar os corpos físicos de pessoas transgênero, elas (es) abertamente visam erradicar a identidade transgênero do mundo, seguindo uma lógica genocida similar aos internatos dos EUA, Canadá e Austrália que buscavam “matar o índio, (e) salvar o humano”. Uma vez que se torna aceitável que um grupo de pessoas seja criminalizado por expressar sua identidade, a sociedade se torna suscetível ao tratamento genocida contra outros grupos também. Em realidade, iniciativas anti-trans estão intimamente relacionadas a ataques aos direitos de mulheres, pessoas de cor, comunidades religiosas minoritárias e imigrantes nos EUA e afora. A criminalização e assédio contra a comunidade trans pode servir de ensaio para uma perseguição mais generalizada de grupos não-desejados dentro de uma estrutura ideológica genocida. Não há como fechar as comportas uma vez que os estados e as sociedades consentem com a erradicação de um grupo específico de pessoas da terra.O Lemkin Institute for Genocide Prevention expressa solidariedade com as pessoas trans em todo o globo. Nós convocamos toda pessoa ao redor do mundo a pensar sobre os precedentes que estão sendo estabelecidos com o nível de estigma, ódio organizado e controle legal sendo defendido por vozes dentro do movimento crítico de gênero. Pedimos às pessoas que escolham proteger os direitos humanos de seres humanos que não se encaixam com facilidade no binarismo de gênero simplista. Pedimos para que as pessoas questionem a que agenda elas estão servindo quando apoiam o discurso de ódio e as iniciativas legais anti-trans. Encorajamos todo mundo a apoiar as pessoas em seus esforços de viver tal qual a pessoa que elas sabem que são. Convidamos todes[4] para que tenham suas mentes e corações abertos, e para aprenderem sobre experiências transgênero. Os verdadeiros desafios à vida humana, a famílias protegidas e seguras, e a comunidades saudáveis são as injustiças históricas e desigualdades estruturais, e não pessoas tentando viver suas vidas em plenitude em suas verdadeiras identidades.

[1]O Instituto Lemkin para Prevenção de Genocídios (tradução livre) trabalha analisando e produzindo material sobre populações no mundo que correm risco de sofrer genocídio ou passam por um. Você pode ler mais sobre ele aqui (em inglês).

[2] No inglês o termo “ideologues” não possui gênero determinado. Optamos aqui por deliberadamente traduzir para o feminino tendo em mente o ambiente de “críticas de gênero” em nosso país, marcado por mulheres feministas, as “radfems”, e por homens e mulheres ultraconservadoras profundamente antifeministas.

[3] “community of moral obligation” no original. Isto é, uma comunidade onde as pessoas dentro dela se reconhecem como iguais e sentem que possuem obrigações éticas entre si.

[4]  Mais uma vez, no original a frase não possui gênero: “We invite people to be open-minded and open-hearted and to learn about transgender experiences”. Decidimos tomar a liberdade de usar a linguagem neutra por julgar adequado ao contexto e ao chamado à ação em tela. 

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