Gustavo Coelho[1]
Professor da Faculdade de Educação da UERJ
Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas – FEBF/UERJ
Derrida, em seu texto “Força e Significação”, chamou de “defunto” o escrito estático em sua forma de “signo-sinal”, uma vez que este “diz então [somente] o que é” sendo “puro funcionamento”, estando portanto neutralizado já que sobrecarregado pelo peso do significado. Já a centelha da poética, aquela da qual depende o conhecimento, agitação da linguagem que mostra a sua sempre vacilante cimentação definitiva ao sentido único, só pode haver pois o próprio fenômeno da linguagem é também, mesmo que nós em meio às demandas da “informação”, possamos nos enganar quanto a isso, estranha à sua completa instrumentação, sendo o movimento de “invocar a palavra arrancando-a ao seu sono de signo” (2009, p.16), não somente algo raro da exclusividade dos poetas, mas um dinamismo principial à possibilidade do linguajar.
E o que isso tem a ver com o Projeto Escola sem Partido ou Escola da Mordaça? É nesse dinamismo linguístico, onde alguma aparente completa e eterna adequação entre palavra e coisa, discurso e fenômeno, significado e significante, alguma neutralidade nessa relação, vive sempre sob alguma ameaça de incompatibilidade, de Diferença, para que haja linguagem, que denuncio aqui a farsa da possibilidade da imparcialidade. Uma farsa que encontra no próprio funcionamento da linguagem, sua impossibilidade. Se em educação, mas também, acredito, na maioria de nossos usos habituais da linguagem, falamos “sobre” alguma coisa, fenômeno, tema, história, conceito, a ideia de imparcialidade pressupõe, portanto, que seria não somente possível, desejado, mas agora “lei”, que a forma como falamos de alguma coisa a objetifique, e portanto, mantendo com ela posição nomeante de indiferença, possa construir um discurso absolutamente compatível, adequado, onde falar da coisa, do tema, do conceito, seja automaticamente a própria coisa em si, mantendo com esta matrimonio irrevogável, nenhum espaço de Diferença. Na imparcialidade, portanto, crê-se numa dupla imobilização, em um duplo controle, tanto dos fenômenos, quanto do discurso, sendo um o vigia da neutralização do outro. Em todo caso, para se ter um mundo com esta possibilidade da plena e, se possível, imediata relação de acordo entre discurso e fenômeno como horizonte, projeta-se assim, sem se dar conta, uma vontade de superação absoluta da ameaça da Diferença, esta que no limite é a garantia ontológica da poética, fundamento da própria linguagem, princípio que mantem a agitação do conhecimento. Quem toma a imparcialidade, então, como meta, o que é notório na subjetividade que funda o espírito de todos os movimentos fascistas, não dá conta de medir a repressão que se faz necessária para erguer esse empreendimento. Repressão que aqui não é somente do tipo discursivo, ou físico, policial, mas especialmente de tipo psíquico, libidinal, comportamental, poético, dado que nesse regime, o Ser também é encurralado nos estreitos limites da falta de espaço de diferenciação deixado pelo esclarecimento neutral, inclusive os próprios fascistas. Daí, sendo breve, que, mesmo prometendo um mundo “melhor”, “pleno”, “de acordo”, “sério”, repleto desses selos de convencimento, o plano de instauração de tal mundo sempre vê seus métodos mergulhados na violência, violência do pior tipo, aquela do extermínio, sem trocação, sem jogo. Sendo, então, o fascista, um crente na imparcialidade do mundo, do que diz, e de si, precisa lidar com o peso psíquico que é a auto-vigilância de quem não pode nunca mostrar-se vacilante, Diferente do que diz de si e do mundo. Tal paranoia na projeção implacável de si e do mundo sob controle, por reflexo, o leva a buscar a compensação desse regime, nos prazeres, que de fato existem, da violência descontrolável, resíduo metodológico da impossibilidade da implantação pacífica de um regime neutro. Toda imparcialidade, neutralidade, é, então, um desejo fascista e que, dada a natureza do ser humano como ser de linguagem, portanto bailante no fio da navalha da imprecisão, da Diferença, é em si mesmo uma impossibilidade. Em todo caso, tomada como possível e desejada, conduz o Ser a crer-se como um “é” definitivo, um mutismo balbuciante uniforme contra-poético, nunca um ente vacilante agitado também por algo da incerteza, da imprecisão, sendo a única dose mal regulada desta sua dimensão que ele pode provar, aquelas ofertadas pela violência do extermínio covarde do outro. Tudo o que é imparcial e neutro, é, portanto, potencialmente genocida, uma vez que por fim, o mundo que projeta é um mundo sem linguagem, já que nesta, quando a imparcialidade torna-se um possível e a neutralidade um desejo, ela mesma, a linguagem, passa a ser o alvo.
É justamente dessa Diferença, desse vão que impede a transparência imediata e automática entre a interpretação e o fenômeno, entre a palavra e o que abordamos com ela, impedindo por fim a possibilidade da neutralidade, que Foucault, em sua obra “As Palavras e as Coisas”, vai tratar e reconhecer como espaço onde o próprio conhecimento, ou seja, aquilo a que se presta a escola, cava sua continuidade, seu trabalho infinito. Em resumo, “os conteúdos”, como os crentes da neutralidade gostam de nomear o conjunto de conhecimentos “escolares”, mesmo estes, só foram possíveis de se concretizarem enquanto tais, graças à inviabilidade existencial da imparcialidade, graças a uma patente impossibilidade da neutralidade constituir linguagem.
Tudo seria imediato e evidente se a hermenêutica da semelhança e a semiologia das assinalações coincidissem sem a menor oscilação. Mas, posto que há um ‘vão’ entre as similitudes que formam o grafismo e as que formam discurso, o saber e seu labor infinito recebem aí o espaço que lhes é próprio: terão que sulcar essa distância indo, por um ziguezague indefinido, do semelhante ao que lhe é semelhante. (FOUCAULT, 2007, p. 41)
Em outros termos, tanto a dimensão poética da expressão quanto a possibilidade humana de construir conhecimentos, seriam possibilitadas por um espaço criativo de indeterminação, sendo mais movimento que estabilidade, tendo portanto divergência com as configurações de linguagem e do Ser demasiadamente enrijecidas pelo “é”, pelo “isto é”, o que nos leva a outro trecho de Derrida no texto “Edmond Jabés e a Questão do Livro”, ao falar do rompimento da “unidade do Ser – no frágil elo do ‘é’ – acolhendo o outro e a diferença na origem do sentido” (2009, p.103). Portanto, a poética, o sentido, e logo os conhecimentos, seriam como figurações da atividade da Diferença, refugos às demandas gramaticais de alocação fixantes e neutrais da existência, antifascista em seu devir portanto. Conhecer é um atividade, então, existencialmente anti-imparcialidade, antifascista em sua ontologia. Pensando o fascismo e a linguagem nesses termos, a meu ver, ele seria resultado do engano hipnótico que acaba tratando essa fragilidade do “isto é” como fortaleza absoluta e indestrutível, ou seja, que vai entender a vida igualando, como equação ideal e definitiva, o “Ser” e o “é” que o define, assim como o conhecimento e sua expressão, chamando isso de “neutralidade”. Em todo caso, essa associação “ideal” entre o “Ser”, ou o fenômeno, ou o tema, ou o “conteúdo” e o que a ele é anexado pelo “é”, caso de fato fosse consolidável, seria o próprio fim da linguagem, a própria quebra de uma condição prévia à linguagem – a Diferença, o algo de inadaptável entre o nome e o nomeado, o vão entre devir e estrutura, a “indeterminação” do sujeito, se formos em Freud e Lacan[2]. Sem isso, nome e nomeado seriam coisa só, não sendo mais possível sequer as condições de nomeá-lo, apagando assim a centelha do conhecimento. Portanto, o fascismo seria a histeria produzida pela crença na possibilidade de reduzir a vida ao que é “imparcialmente dizível” dela, não desconfiando de que sem algo de incapturável próprio do mundo, não haveria condições para dizermos nada. Nesse cenário neurótico, então, o fascista o é fascista por aproximar-se velozmente, dada essa atrofia dos limites do Ser ao “elo do é”, de um terrível mundo mudo, no qual as letras se ergueriam feito grandes estruturas sem espaço a dúvidas de sentido, e só essa linguagem seria possível, língua do regime, língua neutra, escola da mordaça.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LACAN, Jacques. O Seminário de Jacques Lacan – Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
[1] coelhoguga@gmail.com
[2] “Trata-se sempre é do sujeito enquanto que indeterminado” (LACAN 1979, p.31)
Texto maravilhoso!
#EscolaSemMordaça
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