Diogo Salles
Essa semana compartilhei na página uma notícia falando de uma organização de católicos e evangélicos que estariam se mobilizando em Curitiba contra a “ideologia de gênero” [1]. A publicação teve alguns comentários, mas um em específico me chamou a atenção. Ele foi escrito por um perfil claramente alinhada com as ideias do “escola sem partido” e pareceu muito mais uma crítica à nós da página como um todo do que somente à notícia: “Qual parte dos 87% da população é contra ideologia de gênero os professores acéfalos e depravados não entenderam???”.

Isso me chamou a atenção pelo informação de que uma parcela tão grande da população brasileira rejeitaria o debate de questões de gênero nas escolas. Assusta o fato de que tanta gente não aceita que façam parte das discussões em sala de aula questões como a desigualdade entre homens e mulheres; as violências sofridas por pessoas LGBT; as questões políticas que envolvem a forma heteronormativa como nosso mundo se organiza. Fiquei duplamente intrigado porque não é comum que apoiadores do discurso do “escola sem partido” usem dados estatísticos para justificar seus posicionamentos. Talvez o melhor exemplo disso seja o projeto de lei 867/2015 da Câmara dos Deputados, que pretende instaurar o “Programa Escola Sem Partido” em nível nacional. Na justificativa do projeto, não há qualquer menção a pesquisas estatísticas sobre o tema da “doutrinação ideológica”. O texto se limita a dizer que
É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.
Apesar da falta de fontes para uma revelação tão chocante, essa “realidade” seria “conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos”. [2]
Mas não é sempre esse o caso. Durante muito tempo o Movimento “Escola Sem Partido” usou como “prova” para o perigo da “doutrinação ideológica” nas escolas uma pesquisa de 2008 encomendada pela Revista Veja ao Instituto Sensus. [3] Acontece que o levantamento não é dos melhores. Nenhuma das questões feitas para professores, responsáveis e estudantes mencionava a palavra “doutrinação”. Muito pelo contrário, nenhuma das perguntas dava sequer a impressão de que esse era o tema da pesquisa. Por exemplo, quando interrogados sobre “Qual seria a principal missão da escola?”, boa parte dos três grupos respondeu “Formar cidadãos”, que é senso comum para qualquer um/a que já tenha realmente pensado sobre educação como uma parte importante da vida social; o fato de uma maior porcentagem de professores se identificarem com Paulo Freire; ou o fato de que a percepção dos estudantes sobre figuras históricas como Che Guevera ser positiva. Tudo isso é usado para intuir que o problema da “doutrinação ideológica” é auto-evidente. O que acontece é que essa pesquisa, acompanhando o modus operandi usual do movimento “escola sem partido”, vai aos cidadãos fazer perguntas a partir de uma concepção pré-formada sobre o que seria “doutrinação” – e, claro, um certo tipo de “doutrinação”. A credibilidade desses dados simplesmente não é alta o bastante para ser usada como argumento em uma discussão pública sobre educação. A pesquisa realizada pelo Instituto Sensus é claramente enviesada e fraca para embasar a ideia de que há um problema de âmbito nacional que urge ser resolvido.

No entanto, quando se trata de debates de gênero, os números em questão não aprecem deixar dúvidas. Mas de onde vêm esses 87% de brasileiros tão seguros de seu posicionamento nesse debate? Bem, é aí que as coisas se complicam.
Aparentemente, a fonte desse dado é uma pesquisa encomendada pelo jornal Gazeta do Povo ao Paraná Pesquisas. [4] Um número de “2.365 brasileiros, residentes em 188 municípios e em 26 Estados e Distrito Federal” foi entrevistado, o que representa uma amostragem significativa que deveria enterrar qualquer dúvida sobre a validade da pesquisa. A questão é que, assim como a pesquisa do Instituto Sensus, a demanda feita é “defeituosa”, se formos gentis. A pergunta do levantamento que acumulou 87% de respostas negativas era a seguinte: “A teoria de que uma pessoa pode escolher o próprio gênero deve fazer parte do currículo escolar?”. Essa pergunta é problemática por uma série de motivos: ela não especifica que teoria é essa; ela parece confundir identidade ou expressão de gênero com uma questão de escolha; ela não se baseia em qualquer proposta curricular já existente para questões de gênero e sexualidade – os PCN’s [5] e documentos internacionais [6] [7] que tratam disso não mencionam nada desse tipo. A pergunta é ruim porque ela dá a impressão de que o debate sobre gênero nas escolas se resume a uma teoria vaga que deixa a entender que identidade de gênero ou orientação sexual são coisas que podem ser ensinadas ou – na perspectiva dos que falam dos perigos da “ideologia de gênero” – impostas pelo professores.
Assim como na pesquisa da Veja, os levantamentos estatísticos falam de uma coisa enquanto as manchetes chamativas que garantem os cliques para as páginas tratam de outra completamente diferente. Resta questionar qual a necessidade de distorcer as informações dessa forma, já que a “doutrinação ideológica” nas escolas é algo tão “notório” assim.