Fernando Cássio (UFABC)
Atualização em 26/09: no compartilhamento desse texto na página do Movimento Educação Democrática um responsável pela revista Nova Escola pediu direito de resposta e nós o respondemos. Reproduzimos aqui a troca de mensagens pública que pode ser vista no Facebook:
Esse texto foi originalmente publicado pelo autor em seu perfil no Facebook (25/09) em resposta ao artigo de opinião “BNCC: a polarização que ensurdece“, de Paula Peres e Laís Semis, no site da Nova Escola.
Os links incorporados ao texto são de autoria do nosso blog, exceto quando referenciados diretamente pelo autor.

O QUE FALTA NAS LUTAS POLÍTICAS DA EDUCAÇÃO? SEGUNDO A NOVA ESCOLA, BOAS MANEIRAS
Em dezembro do ano passado escrevi um post criticando uma matéria da revista Nova Escola sobre o processo de deliberação da BNCC no Conselho Nacional de Educação (CNE), leitura tosca que reduzia décadas de lutas políticas do campo educacional a uma oposição “pura e simples” à existência da Base. Essa semana me vi engolfado por mais um artigo de Nova Escola, da lavra das mesmas Paula Peres e Laís Semis, em que a dupla de jornalistas tenta agora racionalizar aquilo que viveu nas audiências públicas da BNCC, tanto as da Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental (7 jul. a 11 set. 2017) quanto do Ensino Médio (11 mai. a 14 set. 2018). Textinho difícil, mas que mostra que eu estava certo naquilo que escrevi no ano passado.
A tese do novo artigo está condensada no título “BNCC: A polarização que ensurdece”. A linha fina – “falta de abertura, engajamento com os outros, empatia e respeito” – apresenta alguns dos argumentos utilizados no restante do texto, e já timidamente colocados no artigo que critiquei em 2017, além do método adotado pelas autoras para classificar aquilo que consideram “atitudes socioemocionais” inadequadas nas audiências públicas da Base.
Logo de início elas apresentam o exemplo que comprovaria o ensurdecimento coletivo que teria vicejado nas audiências públicas da BNCC: um diálogo entre uma professora “visivelmente irritada” e um conselheiro “estafado”. Enquanto aquela reclamava de não estar sendo escutada, o membro do CNE respondia com outra pergunta: “Eu não estou aqui te ouvindo?”.
Segundo as autoras, o trecho ilustra “uma triste constatação feita por nós (…) falta diálogo e empatia no setor que mais prega e pede o diálogo e a empatia a seus estudantes”. A autoridade como analistas é reivindicada pela afirmação de terem participado pessoalmente de 8 das 10 audiências públicas programadas nos dois ciclos (2017 e 2018), além de terem realizado diversas entrevistas e debatido “os argumentos dos dois lados”. A avaliação da dupla é que houve “poucos docentes apresentando complementações sobre conteúdos específicos, muita gente querendo mostrar a importância da sua pauta”.
Err… Por onde começar?
Inicio o meu “diálogo” com as autoras – e essa palavra é importante aqui – reclamando para mim a mesma autoridade que elas, e dizendo que não apenas participei das duas audiências da BNCC ocorridas em São Paulo, mas que também analisei as notas taquigráficas das audiências do primeiro ciclo e acompanhei por vídeo todas as outras audiências. Não deixei de estar nelas por falta de vontade, mas por falta de um borderô generoso que me permitisse viajar e acompanhar tudo ao vivo. Também tenho analisado (quantitativa e qualitativamente) os microdados da consulta pública online da primeira versão da BNCC e os dados brutos dos seminários estaduais da segunda versão. E também centenas de pareceres técnicos produzidos ao longo de todo o processo. E também tenho acompanhado o que se produziu a respeito do assunto nos últimos quatro anos. A discussão sobre a BNCC, aliás, pode ser recuada no tempo até pelo menos 1988, segundo escrevi na introdução de um livro que estou organizando com o Roberto Catelli sobre a BNCC, e que deve sair em breve. Também tenho rabiscado os meus textos por aí – na imprensa, inclusive – e desenvolvido diversas pesquisas sobre o tema. Contribuições modestas, diga-se de passagem, diante dos mais de 160 artigos, teses e dissertações publicados sobre a BNCC entre 2014 e 2017, de acordo com o extensivo levantamento feito por Soek e Mainardes (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Embora o argumento de autoridade – a popular carteirada – não faça muito o meu estilo, ele serve para mostrar o quão inútil é começar um texto avisando aos leitores que se “esteve lá e viu” e, portanto, se está habilitado a falar o que quiser. A ideologia da competência floresce no solo fértil do autoritarismo político e do privilégio de classe que transformam as questões políticas em problemas técnico-administrativos, despolitizando-as. Marilena Chauí escreveu isso em 1983, um ano antes de eu nascer.
O caso é que outras pessoas poderiam igualmente reivindicar autoridade sobre o tema da BNCC pela via das lutas sociais. Gente que já viu muitas reformas educacionais de cima para baixo, apoiadas por governos, dirigidas por elites e sustentadas por “especialistas” do campo empresarial, e que resultaram em nada além do que a exacerbação de desigualdades e da exclusão educacional. Muito antes de mim, de Laís Semis e de Paula Peres, um monte de gente vem construindo o debate sobre políticas curriculares no Brasil. No último sábado, por exemplo, participei de um evento fantástico sobre os 30 anos do “Caderno Vermelho” da CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), que trazia uma proposta revolucionária para o Ensino de Geografia nas escolas estaduais de São Paulo construída com a participação do professorado.
A julgar pelo que li no artigo, depreendo que as repórteres de Nova Escola imaginem que o debate curricular no Brasil tenha sido inaugurado em 2015, com o lançamento da primeira versão da BNCC. E que os professores, sindicatos e universidades sejam um mero bando de bestas-feras que não sabem ouvir. Professoras “visivelmente irritadas” e conselheiros “estafados”: a escolha das palavras, principalmente em um texto escrito a quatro mãos, não é nada casual.
A impressão que se tem, já no primeiro parágrafo, é que as autoras presumem uma relação de simetria na audiência pública, como se os três minutos de fala – que garantem “igualdade” de participação na audiência – também garantissem igualdade no poder de influenciar as decisões do CNE sobre a BNCC. Pausa para rir. Sugiro que leiam meu artigo na Carta Educação de 6 dez. 2017, um dos textos em que tratei do assunto. Também recomendo a leitura de uma dúzia de trabalhos sobre governança e redes de políticas nos processos de “implementação” de reformas educacionais.
Se ataco os argumentos das autoras, nomeando-as inclusive, é porque desta vez o texto delas vem claramente identificado como “artigo de opinião”, o que significa que as duas respondem diretamente pela redação. No entanto, não deixo de notar que a revista Nova Escola é o principal escoadouro das ações de comunicação da Fundação Lemann em prol da BNCC, plataforma de “advocacy” que não apenas publica artigos interessados na Base, mas também investe na produção de planos de aula e na arregimentação de equipes docentes para a “entrega direta” da BNCC via redes sociais, em parcerias que incluem o Google.org e aportes conjuntos de recursos com o BNDES para a instalação de internet rápida nas escolas localizadas em regiões do país com baixa conectividade, ensejando um arrojado plano de negócio: fazer seus “planos de aula” alcançarem 1 milhão de professores, quase metade do professorado em atividade no país. Eis o lugar de fala da revista Nova Escola e de quem hoje, naquele espaço, escreve artigos de opinião. Não surpreende que essa gente linda e bem-educada não necessite elevar o tom de voz perante o CNE para ser ouvida.
O texto prossegue com uma cantilena moralista sobre o “respeito ao direito alheio” (o tempo de fala nas audiências), que culmina com a seguinte lição: “Queremos acreditar que todos os profissionais que trabalham com Educação, do monitor escolar ao ministro, defendem o diálogo como a melhor maneira de se construir conhecimento e encontrar saídas para problemas comuns. Vimos pessoas que, quando acompanhadas de seus pares, são amistosas e gentis, mas no debate não se abrem para ouvir o argumento do outro. E isso dos dois lados”.
Pela segunda vez no texto as autoras mencionam os “dois lados”, operando uma simplificação maniqueísta do debate público da BNCC a uma mera contenda entre um grupo “estafado” de conselheiros abnegados, gente de bons modos e com elevada competência técnica – os defensores da Base – e uma horda boçal e histriônica, “visivelmente irritada”, que só sabe gritar e desrespeitar “o direito alheio” – os contrários à Base. Com o mesmo ar de superioridade moral dos “especialistas” que as empregam, as autoras creem-se legítimas porta-vozes do discurso da competência à que se referia Chauí. Desafio as autoras a classificarem as centenas de artigos científicos sobre a BNCC produzidos nos últimos anos nos “dois lados” em que se esforçam para compartimentalizar o debate da Base. Aliás, de que “lado” elas estão? Se o ensurdecimento é “dos dois lados”, também às autoras faltariam as competências socioemocionais para se colocar no lugar do outro?
Em meio ao banzé de incontinência emocional, a temperança é mister dos conselheiros, senhores da audiência pública. A descrição da cena em que Chico Soares “cuidadosamente” toma nota das críticas levantadas na audiência, elencando-as e salientando que o papel do CNE “é ouvir”, e depois explicando que a “revogação [da Reforma do Ensino Médio] está fora do CNE”, é peripatética. Quando Soares é interrompido pelas pessoas, que rejeitam as suas falsas mesuras, a “impressão” das autoras “é de que ninguém tinha ouvido o que o conselheiro acabara de falar”. Isso me faz lembrar as cenas em que Dona Florinda, com seu perene ar de autoimportância, desdenhava da gentalha (“la chusma”, no original). Ela, que nunca fora fã das caricaturas, sempre foi a própria caricatura.
No único lampejo de generosidade do texto, as autoras reconhecem que “aqueles contrários ao documento chegaram à audiência cansados de ver todas as etapas se encaminharem para a aprovação sem que tivessem a chance de dizer o que queriam lá no início”. Será que pelo menos reconhecem que ninguém tivera a chance de abrir a boca? Será que conhecem as condições de trabalho dos professores e professoras do Brasil? A esperança dura pouco. Na frase seguinte elas voltam à carga e bombardeiam o professorado: “Na ânsia de se fazerem ouvir, educadores perdem o foco do momento em que a Base está e cobram algo que deveria ter sido feito no começo do processo: exercer a participação democrática, a construção coletiva, o fazer junto”. Pausa para rir. Putz, que óbvio! Era só participar, construir e fazer junto no momento certo e tudo estaria resolvido. Agora passou o tempo e Inês é morta. Querer “mostrar a importância da sua pauta” numa audiência pública? Foco, pessoal! Muito ajuda quem não atrapalha.
O texto avança, e aquilo que parecia um cinismo ordinário vai ganhando contornos mais bizarros. As jornalistas passam a teorizar sobre as “falhas” do ensino brasileiro “em desenvolver determinadas competências nos cidadãos – as tais das socioemocionais”. Na visão das duas especialistas, gritamos nas audiências públicas porque “Não fomos ensinados a nos desenvolver social e emocionalmente”. Aqui, o moralismo elitista e siderado dos primeiros parágrafos embarca em uma viagem solipsista (feita, aqui, por duas pessoas): “Ao analisar os impasses de escuta das audiências, a ausência de algumas competências salta aos olhos: falta abertura ao novo, engajamento com os outros, empatia, respeito, resiliência emocional.” Não me lembro de as autoras problematizarem no artigo os “impasses de escuta” da audiências para além da transcrição da listinha coligida pelo conselheiro Chico Soares. O problema, naturalmente, são as vaias, jamais os conflitos de interesse entre a Fundação Lemann e seus parceiros, o Estado e a educação como bem público. Pelo visto, dizer que as pessoas não têm “Educação” é suficiente para postular os tais “impasses de escuta”. É a prepotência de quem, além se julgar no direito de definir a direção de reformas educacionais de alcance nacional, também se sente à vontade para impor formas socioemocionalmente adequadas de estabelecer conflitos nas lutas políticas.
Continuam as autoras, nos dois últimos parágrafos, a “analisar” a polarização política no Brasil. “Quem não compartilha da mesma opinião é, claramente, o ‘inimigo’ e merece ser massacrado”. Isso valeria para os “dois lados”? Se sim, a única forma de massacrar o outro é “falar mais alto” do que ele? Bem, não preciso convencer ninguém de que essa é a maneira menos eficiente de massacrar alguém. Conheceriam as autoras formas mais eficazes de massacrar pessoas sem gritos, sem vaias, sem protestos? Saberiam a diferença entre “inimigo” e “antagonista”, para usar uma formulação de Chantal Mouffe? Que os conflitos são simplesmente irredutíveis na política? Como gostam tanto da palavra “diálogo”, me pergunto se as autoras sabem como Paulo Freire tratou desse conceito. A leitura dos verbetes “diálogo/dialogicidade”, “conflito”, “oprimido/opressor”, “luta” e “rebeldia/rebelião” do “Dicionário Paulo Freire” (3ª ed., Autêntica, 2017) leva direto aos originais. Para quem aprecia a leitura em primeira mão, indico “Pedagogia do Oprimido”, “Pedagogia da Esperança” e “Política e Educação”. Antídoto contra a arrogância e convite à autocrítica.
Estou certo que no caso da BNCC, o grito, a vaia e o protesto massacram somente os ouvidos. Se Peres e Semis não compreendem a macropolítica das reformas educacionais, compreendem menos ainda a meso e a micropolítica. É inaceitável que, em uma revista supostamente especializada em educação, duas pessoas que não têm a menor noção da complexidade do debate curricular não se constranjam em passar uma descompostura naqueles e naquelas que elevam a voz nas audiências públicas por estarem cansados de ser tratados como idiotas, como profissionais ineptos que precisam da tutela de mais um referencial curricular centralizado.
Com todos os meus anos de estudo e com toda a “politesse” desenvolvida nos espaços educacionais privilegiados por onde passei, também tenho vontade de gritar quando gente poderosa e cheia de si tenta me desqualificar. Observando que as duas jornalistas, com quem tenho amigos em comum no Facebook, estão utilizando máscaras em suas fotos de perfil contra um certo candidato a presidência, fico aqui me perguntando: o #EleNão seria uma incitação à interdição do debate? Estariam as duas jornalistas dispostas a ouvir argumentos em defesa do candidato que repudiam? Onde ficam a empatia, o respeito, a resiliência emocional?
Em defesa da “boa-educação” nos debates públicos, é provável as autoras considerem o que escrevi uma afronta, quem sabe um ato de cabotinisno desbragado. É, talvez me faltem mesmo competências socioemocionais para o debate público.
Excelente analise.
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