O ataque aos livros didáticos

Texto de Elisa Dourado

Publicado originalmente aqui, em 21/02/2016

Todas as crianças, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero têm direito a uma infância segura, saudável e livre de discriminação.

Assim começa uma cartilha da UNICEF (Documento de posição n. 9, novembro de 2014) intitulada, em tradução livre, “Eliminando a discriminação contra filhos e pais baseada na orientação sexual e/ou identidade de gênero”.

Ultimamente, porém, e principalmente no seio das discussões finais das elaborações dos Planos de Educação (veja a situação dos planos municipais e estaduais aqui) intensas investidas têm sido feitas no sentido contrário a essa recomendação básica do órgão da ONU. Direcionando-se num sentido mais amplo contra a escola enquanto espaço aberto, plural e livre para discussões, livros didáticos têm sido mais violentamente atacados.

Os ataques apoiam-se em algumas suposições infundamentadas – como a de que crianças não dispõem de capacidade crítica e que, consequentemente, não devem desenvolvê-la ou exercitá-la. Ignoram as relações pedagógicas entre discentes, professores e toda a comunidade escolar. Reproduzem uma concepção de ensino e aprendizagem há muito defasada: a de que crianças são passivas nessa dinâmica em contraposição aos professores, dotados com o poder do conhecimento único e por isso mesmo capazes de manipular a inocência dos discentes. A escola aqui é entendida como espaço hermeticamente fechado, imune à realidade à sua volta. Esses ataques visam proibir e criminalizar menções à diversidade sexual em sala de aula.

A seguir, duas declarações de apoiadores do Escola Sem Partido, disponíveis na seção que o movimento dispõe em seu site para denúncias de livros didáticos julgados como “inadequados”:

O estupro intelectual da infância, por Olavo de Carvalho:
O método pedagógico implantado neste país é o do estupro intelectual, calculado por Antonio Gramsci para alcançar suas vítimas numa idade em que seus cérebros não estejam prontos para reagir criticamente a um assédio publicitário incansável e brutal.

Livros didáticos para a revolução socialista, por Orley José da Silva:
(…) Nos livros para a escola pública do próximo ano, as referências à fé cristã praticamente desaparecem, restando apenas alguns poucos registros das festas do catolicismo popular. Por outro lado, eles ampliam o destaque dado aos aspectos doutrinários e práticos de religiões de matriz africana, bruxaria, esoterismo, além da mitologia, emprestando-lhes status de manifestação cultural e de maneiras alternativas de espiritualidade.

No mesmo texto, o programa “Escola Sem Homofobia”, apelidado pelo deputado Jair Bolsonaro como “Kit Gay” e vetado em 2011, aparece como tentativa de indução da conduta sexual de estudantes por parte do governo.

O MEC (…) acrescentou o delicado tema da configuração familiar. Desse propósito para a desconstrução do modelo tradicional de família, não escapa nem mesmo o Plano Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) quando apresente, de maneira lúdica, as novas famílias para crianças com 8 anos de idade.

Ambos os depoimentos permitem perceber por onde os ataques estão sendo feitos e algumas de suas suposições: no primeiro, percebe-se novamente a ideia de crianças como folhas de papel em branco, esperando ser preenchidas por um professor que abusa de seu suposto poder. No outro, percebe-se outro fator: sob o disfarce da defesa da neutralidade, revelam-se intolerância religiosa e homofobia.

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Fonte: Cartilha “Debate sobre Gênero nas escolas: e eu com isso?” – Associação de professores da PUC-Campinas.

Muitos ataques estão focados no combate à chamada “ideologia de gênero”. Aliás, como veremos adiante, este é o foco principal nas Câmaras dos Vereadores e nas Assembleias Legislativas em torno dos debates sobre os Planos de Educação. ­­Recentemente, publicamos em nossas redes sociais um vídeo desconstruindo a ideia de que exista uma “ideologia de gênero”. Torna-se claro que a cunhagem dessa expressão visa somente à provocação de medo através da desinformação: fazendo uma confusão em torno dos conceitos de ideologia, gênero e dos supostos atores por trás dessa “ideologia”, essas campanhas reproduzem discursos de ódio, segregação e violência. Sobre as escolhas semânticas da expressão “ideologia de gênero”, veja mais aqui.

Ainda em relação aos livros didáticos, o coordenador do Escola Sem Partido, Miguel Nagib, chama de “iniciação nos mistérios do esquerdismo militante” a abordagem para o pensamento crítico em materiais escolares. O artigo – intitulado “Envenenando a alma das crianças“ – deixa clara a concepção do ESP e seus apoiadores sobre as dinâmicas de aprendizagem e ensino . Neste mesmo artigo, o advogado defende que a ideia de justiça social presente em livros didáticos seja fruto da inveja de pessoas incapazes de conseguirem realizar-se através do mérito. Em outro artigo da mesma seção, autores comparam a abordagem de livros didáticos para diferentes temas e sugerem a abordagem considerada “adequada”.
Concluindo sua análise sobre os livros didáticos, Nagib afirma:

(…) No Brasil de hoje, os autores de livros didáticos já não se contentam em fazer a cabeça dos estudantes; eles querem danar as suas almas. (…). Assim postas as coisas, só nos resta pedir a Deus que proteja as crianças brasileiras da bondade militante dos seus professores.

A estratégia – pedir a Deus que proteja as crianças brasileiras -, não é exatamente a utilizada, no momento, por grupos que apoiam os princípios do ESP.

No bojo das discussões e da finalização dos Planos de Educação, parlamentares de todas as instâncias resolveram lutar ativamente contra aquilo o que consideram inadequado em materiais escolares.

Vejamos a situação em alguns municípios:

Nova Iguaçu (RJ)

O prefeito de Nova Iguaçu, Nelson Bornier (PMDB) sancionou no dia 17/02 uma lei que proíbe divulgação de materiais didáticos sobre diversidade sexual e de combate à homofobia. A lei foi publicada na íntegra e, no dia seguinte, republicada com veto parcial.
De autoria do vereador Denilson Ambrosio Soares (PROS), a lei que agora está em vigor é um ataque frontal à democracia e aos direitos de todos os cidadãos. Proíbe a “distribuição, exposição e divulgação” de “qualquer tipo de material didático ou paradidático contendo orientações sobre a diversidade sexual nos estabelecimentos de Ensino da rede pública da Cidade de Nova Iguaçu”. O trecho vetado simplesmente definia o que se entende sob esses materiais didáticos. No entanto, o veto, instrumentalizado como uma concessão às intensas repercussões negativas da lei, na verdade a deixa ainda mais preocupante. Ao deixar de fora uma definição clara dos materiais visados, abre espaço para mais livros didáticos serem censurados e julgados arbitrariamente como “inadequados”. O parágrafo vetado ainda explicitava escancaradamente o teor homofóbico e inconstitucional da lei. Para o vereador Denilson, falar de diversidade sexual dentro da sala de aula é fazer apologia. Ele afirma, ainda, que não se pode mudar a realidade de um país protegendo minorias. Que entendimento de regime democrático é este, que o vê como uma ditadura da maioria? — As pessoas não tem noção de como os números [de violência de intolerância sexual e homofóbica] são grandes. Não discutir o assunto só faz a coisa piorar — afirma o coordenador do Centro de Cidadania LGBT da Baixada Fluminense, Ernane Alexandre.
O projeto de lei (PL) foi votado por unanimidade pelos 29 vereadores da Câmara Municipal de Nova Iguaçu.

Natal (RN)

Na última quarta-feira (17) a Câmara Municipal de Natal (CMN) deu continuidade às votações das emendas referentes ao Plano Municipal de Educação. Para o vereador Júlio Protásio (PSB)  as mudanças votadas são uma garantia da “defesa do verdadeiro sentido da família tradicional”. Os vereadores aprovaram a retirada dos termos  “orientação sexual” e “gênero” do Projeto de Lei original. No plenário, representantes do movimento LGBT, da sociedade civil e de instituições religiosas acompanharam a votação.

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Protesto na Câmara Municipal de Natal. Fonte: site da Câmara

Goiânia (GO)

Em Goiânia, 17 vereadores assinaram requerimento favorável à suspensão de livros didáticos para crianças de 6 a 10 anos que discutam gênero e diversidade sexual. De autoria do vereador Dr. Gian (PSDB), o requerimento atingiu a maioria de votos necessária para ser analisado pela Secretaria Municipal de Educação.
Mais informações aqui.

Palmas (TO)

O vereador João Campos (PSC) requereu que seja suspensa a distribuição dos livros didáticos selecionados pelo MEC/FNDE 2016, por supostamente estarem em “desacordo com o Plano Municipal de Educação de Palmas”. O PME de Palmas foi aprovado no final de 2015, sendo Campos o seu relator. O texto foi aprovado sem nenhuma menção aos termos “gênero” e “diversidade sexual”, pois Campos temia seu uso como “aparelhamento ideológico” nas escolas.

Nível federal

Não se deve esquecer que o ataque aos livros didáticos é só uma frente mais pontual contra as questões de gênero no ensino básico. Como já citamos no blog*, há uma lei que busca proibir a menção a gênero em todos os materiais relativos à educação nacional. Além disso, o deputado federal Elizeu Dionizio (PSDB-MS) cobrou no dia 03/02, no plenário da Câmara dos Deputados, que o Ministério da Educação (MEC) reveja o conteúdo de livros do  Programa Nacional do Livro Didático/2016. Segundo o parlamentar, os livros podem “erotizar crianças de 6-10 anos“.
Na casa ao lado, a do Senado, Magno Malta (PR-ES) articulou a criação de uma força-tarefa para “combater a ideologia de gênero” nas escolas. O senador também é presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família e Apoio à Vida.

*O Projeto de Lei 2731/2015, de que trata o texto, foi retirado da árvore dos apensados ao 7181/2014. A crítica, no entanto, continua válida para os outros PLs.

Este material didático é combatido por conter imagens…

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… como estas:

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No texto da “denúncia” (disponível aqui), consta: “Em todo o livro há pelo menos 6 ocorrências de pares homoafetivos masculino e feminino com crianças, sugerindo modelos de família”.

O papel da escola

Segundo o Conselho Nacional de Educação, entre as leis que fundamentam a discussão de gênero em sala de aula estão a Constituição Federal, que no artigo 3º, inciso IV, prevê a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, além da LDB e de outros documentos do MEC. De acordo com nota divulgada em setembro do ano passado, “o trato das questões relativas à diversidade cultural e de gênero já [está] devidamente consagrado no corpus normativo do país para a construção da cidadania de segmentos específicos da população brasileira e sobre o qual não pode permanecer qualquer dúvida quanto à propriedade de seu tratamento no campo da educação.”

Sobre as consequências de se retirar os termos gênero e sexualidade dos Planos de Educação, esvaziando da escola o seu papel de discutir questões relacionadas às realidades dos estudantes, o Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos é contundente:

“A importância de se discutir tais questões no âmbito da educação é atestada pela amplitude e incidência de crimes homofóbicos e violência de gênero no Brasil. Estes ocorrem no contexto de uma história e uma cultura construída com linguagem machista, sexista e homofóbica que vitima, antes tudo, no âmbito simbólico. As mulheres, as lésbicas, transexuais, travestis, bissexuais, gays e outros sujeitos sexuais marginalizados têm suas imagens desvalorizadas, o que enseja um clima favorável a violências de todo tipo. Tratar a discussão sobre gênero e diversidade sexual como matéria de educação significa dar um passo importante para reduzir as desigualdades e a violência que marcam o país.”

Desigualdade e violência estas que serão combatidas com muito mais dificuldade se vigorar o discurso que tenta alienar essas questões das salas de aula. Frequentemente, é pelo argumento da “neutralidade” que apoiadores do ESP conseguem convencer os seus interlocutores. Será que sob o discurso em defesa da “neutralidade”, os apoiadores do ESP não desejam veicular sua própria ideologia? A discussão da “neutralidade” já está superada no ambiente da educação. Mais uma vez, ela expressa a concepção do ambiente escolar proposto por estes grupos políticos: a escola como um espaço estático, sem vida e fechada à realidade. Demian Melo, em artigo sobre a questão da “neutralidade”, também fala sobre o uso da “ideologia”:

Para os animadores de tal campanha, é como se ideologia fosse uma coisa localizada apenas na esquerda, enquanto essa direita hidrófoba se apresenta como “o normal”. Nada, portanto, mais ideológico.

A escola que defendemos é o espaço onde acontece o encontro de ideias, visões de mundo e opiniões diferentes. É o espaço onde se pode exercitar livremente a análise crítica da realidade. O livro didático deve proporcionar essa oportunidade. Através deles, servindo como catapultas para discussões, este ideal de educação pode se realizar. Iniciativas como a dos apoiadores do Escola Sem Partido e seus derivados retiram da escola a prerrogativa do livre encontro de ideias, além de avalizar o histórico de violências que existe em nosso país, violência que se traduz de diversas formas. Devemos seguir lutando para que isto não aconteça.

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Acima, fotos de livro didático “denunciados” por apoiadores do Escola Sem Partido. Trata-se da série de livros didáticos aprovados pelo FNDE “Ligados com História” e “Ligados com Geografia”.

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